Marco Oficial da Educação Integral no Brasil

Desde a Constituição de 1988, a instituição de um conjunto de novos instrumentos de gestão foi decisiva para possibilitar o acesso à educação pela sociedade brasileira e iniciar a agenda de enfrentamento de melhoria do desempenho. Se, “em 1993, o filho de um pai sem educação formal teria completado, em média, apenas 4 anos de escolaridade”, a partir de 2010, “os estudantes brasileiros passam a completar entre 9 e 11 anos de escolaridade, independentemente da educação dos pais” (World Bank, 2010:39). Isto foi possível, porque houve a criação do FUNDEF[1] em 1995, durante o Governo Fernando Henrique Cardoso, iniciando a equalização do financiamento da educação e, sobretudo, em termos federativos, entre regiões, estados e municípios, ampliada para o ensino médio e pré-escolar por meio do FUNDEB, no Governo Luiz Inácio Lula da Silva, assim como com o programa de transferência de renda do Bolsa Família, que, com a condicionalidade de garantia da permanência na escola de crianças e jovens beneficiados, cuja “cobertura cresceu de 4,9 milhões de famílias em 2002 para 12 milhões em 2009, com transferências aumentando de 3,4 para 11,9 bilhões de reais (a preços de 2009)”, efetivou condições derradeiras para garantia do acesso à escola (World Bank, 2010:3).

Em razão desses avanços institucionais, o país pôde, então, se dedicar à pactuação e formulação de diretrizes e propostas para avançar na qualidade da educação no país. Mais precisamente, a partir de 2007, com a Lei nº 11.494/2007, que instituiu o Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica – FUNDEB, reestruturando a dinâmica de financiamento da educação no país, pavimentou-se a condição para novas iniciativas, exigindo, inclusive, regulamento específico para educação básica em tempo integral e sobre os anos iniciais e finais do ensino fundamental (Art. 10, § 3º). Neste contexto, desde 2007, o Governo Federal vem promovendo o fomento da Educação Integral de crianças, adolescentes e jovens, financiando atividades sócio-educativas a serem oferecidas no contraturno escolar, por meio do Programa Mais Educação, instituído pela Portaria Normativa Interministerial nº 17/07. O programa dirige-se expressamente para a realização de “ações sócio-educativas no contraturno escolar, incluindo os campos da educação, artes, cultura, esporte, lazer”, destinados “à melhoria do desempenho educacional, ao cultivo de relações entre professores, alunos e suas comunidades, à garantia da proteção social da assistência social e à formação para a cidadania”, neste caso com foco em “direitos humanos, consciência ambiental, novas tecnologias, comunicação social, saúde e consciência corporal, segurança alimentar e nutricional, convivência e democracia, compartilhamento comunitário e dinâmicas de redes” (PNI 17/07, art. 1°, parágrafo único).

Já na Constituição Brasileira, havia se determinado a promoção de uma educação “visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (CF, art. 205). Oito anos depois, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (Lei nº 9.394/96) passou a focalizar a Educação Integral no “desenvolvimento integral da criança de até 5 (cinco) anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade” (LDB, art. 29) e estipulou que os currículos do ensino médio viessem a “considerar a formação integral do aluno, de maneira a adotar um trabalho voltado para a construção de seu projeto de vida e para sua formação nos aspectos físicos, cognitivos e socioemocionais” (LDB, art. 35-A, § 7º). Ademais, previu a ampliação progressiva da jornada escolar do ensino fundamental para o regime de tempo integral (Lei nº 9.394/96, arts. 34 e 87). Essa diretriz, todavia, demoraria mais 5 anos para ser efetivamente validada, emergindo, de modo executivo, no Plano Nacional de Educação-PNE (Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001), que instituiu a meta de ampliação progressiva da jornada escolar para um período de, pelo menos, 7 horas diárias, destacadamente para as “crianças das camadas sociais mais necessitadas” e “crianças de idades menores, das famílias de renda mais baixa, quando os pais trabalham fora de casa”, determinando colocar, até 2024, 25% dos estudantes e 50% das escolas em tempo integral. A questão dos currículos demoraria bem mais, até novembro de 2018, para ser processada, sem, no entanto, desfrutar do acolhimento de setores relevantes da comunidade educativa nacional[2].

Diferentemente de iniciativas anteriores, na conjuntura atual, vivenciamos um grande avanço político, pois temos, pela primeira vez, uma formulação oficial de política para a disseminação da educação integral. Todavia, ainda que intensa a mobilização ao longo da última década e significativos os instrumentos normativos gerados, a estruturação dessa política mostra-se, até esse momento, imprecisa e titubeante. Paradoxalmente, não temos exatamente uma proposta de educação integral, mas diretrizes e apoio para a expansão da oferta de educação em tempo integral. O sentido da política continua impreciso, prevalecendo a retórica de promoção de um desenvolvimento humano genérico. Fala-se, na referência para o debate nacional, de uma “reorganização curricular para buscar a unidade entre as diversas realidades dos estudantes e suas famílias, seus espaços concretos, tempos vividos, de modo que o aprendizado se dê pela socialização, pelas vivências culturais, pelo investimento na autonomia, por desafios, prazer e alegria e pelo desenvolvimento do ser humano em todas as dimensões”. Defende-se que a Educação Integral deva ser “fruto de debates entre o poder público, a comunidade escolar e a sociedade civil, de forma a assegurar o compromisso coletivo com a construção de um projeto de educação que estimule o respeito aos direitos humanos e o exercício da democracia” (SECAD/MEC, 2009:29, 30 e 44). Entretanto, tais diretivas continuam a emular a necessidade da educação tratar da diversidade e da realidade social da escola, dos educandos de forma não estruturada.

O modo de implementação mostra-se hesitante, porque aponta, genericamente, a necessidade de articulação de diversas iniciativas pedagógicas e educacionais supostamente capazes de promoção da Educação Integral de indiscutível complexidade político-institucional, sem conseguir indicar como elas podem se combinar, efetivamente, para viabilizar um processo educacional qualitativamente superior. Por um lado, reconhece-se que a sua formulação esteja “implicada na oferta dos serviços públicos requeridos para atenção integral, conjugada à proteção social” com “políticas integradas (intersetoriais, transversalizadas) que considerem, além da educação, outras demandas dos sujeitos, articuladas entre os campos da educação, do desenvolvimento social, da saúde, do esporte, da inclusão digital e da cultura” (SECAD/MEC, 2009:29, 30 e 44), sem oferecer indicativos de como tornar tal diretriz realidade. Por outro, assente-se que “a Educação Integral exige mais do que compromissos: impõe também e principalmente projeto pedagógico, formação de seus agentes, infraestrutura e meios para sua implantação”, aqui também incapaz da proposição de iniciativas estruturadas e da realização de ações sistêmicas para enfrentar as situações descriminadas.

Nota

[1]. O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do MagistérioFUNDEF foi instituído pela Emenda Constitucional n.º 14, de setembro de 1996, e regulamentado pela Lei n.º 9.424, de 24 de dezembro do mesmo ano, e pelo Decreto nº 2.264, de junho de 1997.

Em http://mecsrv04.mec.gov.br/sef/fundef/funf.shtm. O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da EducaçãoFUNDEB foi criado pela Emenda Constitucional nº 53/2006 e regulamentado pela Lei nº 11.494/2007 e pelo Decreto nº 6.253/2007, em substituição ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério – FUNDEF, que vigorou de 1998 a 2006. Emhttp://portal.mec.gov.br/fundeb-sp-1090794249.

[2]. Um conjunto de entidades representativas, dentre elas, a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), Associação Nacional de Política e Administração da Educação (ANPAE), Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), divulgaram Manifesto de Repúdio à Aprovação de Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio-DCNEM, pelo Conselho Nacional de Educação em 07 de novembro de 2018, em substituição à Resolução CNE/CEB 02/2012, para a sua adequação ao disposto na Lei 13.415/17, Lei da Reforma do Ensino Médio, que teve origem na Medida Provisória 746/16. O documento critica a edição da MP 747/16, o conturbado processo das cinco audiências públicas que trataram da Base Nacional Comum Curricular-BNCC em 2018 e a normatização pelo CNE da possibilidade de cumprimento de até 30% da carga horária na modalidade a distância, afirmando que “fica ainda mais nítido que a reforma do ensino médio vai ao encontro do privado em detrimento do público, do alargamento do empresariamento da educação básica, do (falacioso) discurso da necessidade de adequação às necessidades do setor produtivo empresarial”.

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Wieland Silberschneider é Doutor em Economia e Mestre em Sociologia pela Universidade de Minas Gerais.