Cronos, Kandir e Pimentel: a maldição dos deuses da Estadosfera

Cronos, o Deus do Tempo, desde que decidiu devorar todos seus filhos para se manter no poder, não dorme. Na verdade, Zeus, o único que escapou, o fez quando, inadvertidamente, em seu lugar, seu pai engoliu uma pedra, o umbigo do Universo. Zeus sobreviveu, casou-se com Métis, deusa da Prudência, que lhe ajudou a dar a Cronos uma poção para que ele regurgitasse os filhos devorados, iniciando uma terrível guerra entre os deuses. Mesmo vencendo Cronos, Zeus continuou exercendo os poderes do pai, devorando seus inimigos e deixando de lado a prudência como fez com a própria Métis, a quem engoliu, ao fazê-la passar-se por um gota d’água, temendo que seus filhos a serem por ela gerados, viessem a lhe tomar o poder. Cronos, por sua vez, aprisionado no Mundo Inferior, continuou a imperar, ensinando homens e mulheres a interromper a evolução dos acontecimentos, a praticar o desmemoriamento, quando assim entender, tal como seu maior filho, Zeus, aprendeu a fazer.

Cronos esteve presente em Brasília no último dia 5 de agosto, com o Presidente da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, Deputado Agostinho Patrus, acompanhado do Governador Romeu Zema diversos deputados e o Advogado-Geral do Estado, Dr. Sérgio Pessoa de Paula Castro, que lá estiveram, para reunião no Supremo Tribunal Federal – STF, a fim de debater as providências para o cumprimento da decisão daquela Casa sobre o ressarcimento das perdas com a aplicação da Lei Kandir. A Assembleia Legislativa busca fazer com que Minas seja lembrada, neste caso, já há cerca de 2 anos, neste que périplo que gradativamente vai se tornando assunto de conhecimento dos mineiros, pelo menos, dos servidores do Estado, que torcem para que a crise fiscal acabe.

A Lei Kandir, como todos sabem, foi aprovada como Lei Complementar nº 87, em 13 de setembro de 1996, pondo fim à incidência do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS sobre as exportações de bens primários e semielaborados e sobre as aquisições destinadas ao ativo permanente, assim como estabeleceu a obrigação de compensação pela União aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios pela perda de receita resultante. Há mais de 30 anos iniciava-se o questionamento das consequências desastrosas da lei para as finanças do Estado de Minas Gerais, pois ela passou a impedir o recolhimento de impostos sobre o principal eixo dinâmico da economia mineira, as exportações, principalmente de carne, café e minério.

É verdade que a Lei criou um seguro-receita para tentar compensar as perdas. Seu cálculo, porém, relativamente complexo, pressupunha capacidade econômica dos estados atingidos de absorverem o impacto no curto prazo. Desse modo, limitou o ressarcimento, garantindo 100% de reposição apenas até 1998 e sua redução gradativa até 2002. “Os estados que tivessem perdas superiores a 10% de sua arrecadação de ICMS teriam o prazo de repasse estendido na proporção de mais 1 (um) ano além de 2002 a cada acréscimo de 2% nas suas perdas, até o limite total de 16%, correspondendo ao prazo máximo de 10 anos, findo em 2006” (Souza Cruz e Batista Júnior, 2019:23).

Já na época, o mecanismo foi contestado, mas a aprovação da lei se deu no contexto de estabilização da moeda no país, com a instituição do Real. O Governo Fernando Henrique Cardoso tinha 6 Governadores, além de ter participado de coalizões vencedoras em 6 (seis) Estados (https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Eleições_gerais_no_Brasil_em_1994) e se valeu da negociação do fim dos bancos estaduais e da retórica liberal-globalizante de redução do custo-Brasil e manutenção da paridade da moeda com o dólar para aprovar a solução sem maiores problemas.

Em 2000, o seguro foi extinto com a Lei Complementar nº 102 e criado o fundo orçamentário com coeficientes de participação pré-fixados para repasses definidos aos estados, Distrito Federal e municípios, ao longo dos exercícios de 2000, 2001 e 2002. Nova alteração se deu com a Lei Complementar nº 115, de 26.12.2002, que estendeu a previsão de transferência de recursos até o exercício de 2006, fixando o valor dos mesmos para 2003 e definindo que, para os demais exercícios, os montantes seriam consignados nas respectivas leis orçamentárias da União.

Em 2003, a desoneração de exportações bem como o ressarcimento dos Estados e Municípios foi constitucionalizada, por meio da PEC 42, de 19.12.2003, que, em seu art. 3°, acrescentou o art. 91 no Ato das Disposições Constitucionais e Transitórias, a obrigação da União de entregar a Estados e Distrito Federal, montante previsto em lei complementar, de acordo com critérios, prazos e condições nela determinados. Determinou que, enquanto não viesse a ser editada a mencionada lei complementar, deveria permanecer vigente o sistema de entrega de recursos previsto no art. 31 e Anexo da LC nº 87/96, com a redação dada pela LC nº 115/02.

Ora, a determinação constitucional não foi processada e as soluções de compensação não foram suficientes. Assim, mais de uma década depois de serem engolidos pelos prepostos de Cronos na burocracia pública federal, o Governador do Pará, Simão Jatene/PSDB, protocolou em 27.08.2013, junto ao STF, a Ação de Inconstitucionalidade por Omissão -ADO nº 25, questionando, justamente, a omissão inconstitucional do Congresso Nacional na elaboração da lei complementar prevista no art. 91 do ADCT. Em 2016, por unanimidade, o Supremo julgou procedente a ADO.

Os detalhes legais desse processo estão no livro ‘Desonerações de ICMS, Lei Kandir e o Pacto Federativo’ (baixe aqui), recém publicado pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais, organizado pelo deputado Luiz Sávio de Souza Cruz juntamente com o ex-Advogado Geral do Estado, Dr. Onofre Alves Batista Júnior. Ali, estão em mais de 300 páginas os documentos que retratam os episódios desse périplo que a burocracia, gestora do tempo e das vontades públicas na Estadosfera, esta esfera de regras próprias aonde acontece a vida público-estatal, impôs em ritmo imperial, do modo que ela bem entendeu.

Mais recentemente, como se sabe, o Supremo Tribunal Federal proclamou, por unanimidade, em 2016, sentença para que fossem pagas imediatamente as perdas pela União, fosse por meio de lei aprovada pelo Congresso Nacional, fosse por ação direta do Tribunal de Contas da União, no prazo de um ano. De acordo com o próprio relator da Comissão do Congresso que chegou a elaborar o projeto de lei em questão, Senador Wellington Fagundes, este prazo se esgotou em agosto de 2018.

Em setembro de 2017, o Governador Fernando Pimentel, conhecedor das crônicas do tempo, liderou reunião .com os Governadores do Acre, Piauí, Rio Grande do Norte, Rondônia e Sergipe, trazendo a público a Carta de Diamantina. Nela, os Governadores reafirmaram sua insatisfação com os poderes de Cronos, ressaltando que, “no intervalo tão extenso desde a promulgação da Lei Kandir, há 21 anos, as perdas dos Estados acumularam-se a valores exorbitantes e vêm prejudicando, cada vez mais intensamente, a capacidade do cumprimento das atividades inerentes aos Estados, especialmente Educação, Saúde e Segurança” (Carta de Diamantina).

Governadores presentes em 12.09.2017 em Diamantina-MG

Apesar de sua pronta iniciativa, o Governador Pimentel não teve o benefício de ver seu esforço se materializar em recursos concretos, que poderiam ter lhe salvado, no último ano de mandato, ao invés de ter de reter repasses para municípios, a fim de manter a governança financeira do Estado e, quem sabe, dando-lhe melhores chances eleitorais. Foi vítima da maldição da Estadosfera, a procrastinação, neste caso, da casta dos burocratas do Tesouro Nacional, além de ser engolido nas lembranças, como se o que acontece agora fosse novidade absoluta. E paga o preço do desmemoriamento endêmico, que insiste em lhe olvidar o protagonismo.

Agora, novamente, o Deputado Agostinho Patrus destaca o imponderável poder dos filhos de Cronos: “Parece que o Governo Federal não entende o Brasil como uma federação. As desonerações nos custaram uma saúde de mais qualidade, uma educação deficitária, dificuldades na infraestrutura e na segurança pública. Minas Gerais foi destratado e não aceita essa posição e se coloca frontalmente contra ela. Não é possível que diante de uma reunião em cima de uma decisão já tomada pelo Supremo os representantes do Governo Federal não apresentem nenhuma proposta”, criticou Agostinho Patrus (https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2019/08/05/interna_politica,1075018/sem-acordo-por-lei-kandir-politicos-mineiros-prometem-briga-com-uniao.shtml).

Nova data se descortina dessa reunião por determinação do Ministro Gilmar Mendes, 4 de dezembro. Até lá, espera-se a aprovação da lei ou, senão, a canetada do nobre Ministro. Até lá, esperamos que os burocratas de plantão de Minas não se transformem em gotas d’água e sejam sugados seja por Zeus, seja por Cronos, para as entranhas das minudências orçamentárias e legalistas. Até lá, esperamos que o caminho da inteligência das soluções não precise ser aberto com machado tal como precisou Atena, deusa da Sabedoria, para nascer da cabeça de Zeus.

Sobre Wieland 53 Artigos
Wieland Silberschneider é Doutor em Economia e Mestre em Sociologia pela Universidade de Minas Gerais.