“O longo amanhecer”

Como título desta breve reflexão, tomo emprestado de Celso Furtado[1] o nome de um de seus livros[2], uma seleção de ensaios tendo como motivação principal pensar o Brasil na perspectiva da superação do subdesenvolvimento (em sentido amplo). Início minhas considerações com uma observação feita por ele, em tempos já distantes – e tão presentes! -, que foram aqueles do período que se prolongou por 21 anos após o Golpe Militar de 1964: “Em nenhum momento de nossa história, foi tão grande a distância entre o que somos e o que sonhávamos ser.

O que era desalentador naquele período ganha no tempo presente forma e conteúdo de tragédia social nunca imaginada dentro de marcos mínimos civilizatórios. Repito: tragédia social nunca imaginada.

A decisão de 57.797.847 milhões de brasileiros (crível?, imaginável?) em eleger o Capitão Bolsonaro para presidente do país deu materialidade histórica (e legitimidade…) ao que a elite brasileira busca, tácita ou explicitamente, reverter desde 1888, quando se interrompeu por aqui o último ciclo formal da escravidão humana na América (trabalhos forçados, jornada exaustiva, castigos, condições degradantes e restrição de locomoção em razão de dívida com o empregador): capturar o comando institucional e político do Estado brasileiro para recolocar o país no mapa dos que não importam, econômica, social ou politicamente, no contexto geopolítico das nações.

Radicalizar a desqualificação do mundo do trabalho, da produção, da ciência, do pensamento crítico, do conhecimento e da solidariedade social foi a exigência da nova ordem capitalista do bloco americano (EUA) para apoiar e ajudar a eleger o Capitão, este, ancorado na nossa velha “elite do atraso”, do pato, dos pampas, do pão de queijo, da farda apijamada, agora subordinada a milicianos sob o comando da família do presidente.

Impor a banalização (entendida como senso comum), seja pela verborragia limitada e tosca do Capitão, seja pela violência do Estado, é matéria prima para desmobilizar a sociedade e criminalizar qualquer forma de organização que se alinhe a critérios rudimentares de progresso, seja econômico, cultural, civilizatório ou mesmo de convivência social, dentro do que se entende universalmente por isso no mundo civilizado. Uma quebra radical de paradigmas, para além dos conceitos convencionais à esquerda e a direita do ambiente político tradicional.

A contrapartida para essa monumental tragédia social em curso foi acertada bem antes, no lusco-fusco produzido pela sombra das togas negras do Supremo Tribunal Federal que aceitou, incensou e patrocinou o vale tudo, num Big Brother televisivo que começou lá atrás, em espetáculos grotescos de vaidades senis e jurídica indigência intelectual. Mas que tinha alvo certo e encomendado, mas que também desnudou a anatomia xipófaga do judiciário brasileiro com a elite do atraso.

E, num correr de vassoura por baixo da mesa da nova ordem, já se contabiliza a paga pela obra, nas sobras de resíduos financeiros socialmente improdutivos, mas suficientes para sustentar uma elite nativa agora ainda numericamente mais reduzida, absolutamente deletéria e improdutiva, ativista de um capitalismo intelectualmente estéril, mas perfeitamente alinhado ao comando do estamento gerencial americano (EUA) e à nova arquitetura internacional da era do capital financeiro improdutivo[3].

Será um governo de pouquíssimos, a preparar um Brasil para uma Casa Grande ainda menor e uma Senzala imensa, a se confundir com a vastidão do mar. Certamente, ainda irão se lambuzar muito no gozo da imposição de uma derrota a todos os brasileiros que, da segunda metade do século XIX até o amanhecer do século XXI, ousaram pensar o Brasil com o protagonismo que a história está sempre a lhe reservar e cobrar. De Pedro II, Caio Prado Jr., Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Milton Santos a Celso Furtado, sem excluir representantes do pensamento conservador brasileiro, como Gilberto Freyre, Sobral Pinto, Eugênio Gudin, Roberto Campos, Mário Henrique Simonsen, Delfim Neto e outros. É uma derrota e uma tragédia histórica que não se configura somente ao arcabouço do pensamento de esquerda. É uma derrota da civilização.

O modelo de ruptura à extrema direita proposto na campanha eleitoral de 2018 pelos vencedores do 28 de outubro foi único. Talvez não se deva mais falar em ruptura anti-institucional, e sim de uma ruptura mais radical, pós-institucional. E, sem régua adequada para medir o tempo, a extensão e a profundidade da tragédia, não se pode negar que eles venceram e continuam a cumprir os acertos anteriores da vassalagem de rapina. As pautas políticas da esquerda brasileira não conseguiram nem convergir e nem enxergar o momento, e por isso entraram num perigoso de colapso.

Sem devaneios: para se encontrar a medida certa para buscar saídas é necessário afirmar que, no momento, não existe nenhum pacto social possível a sinalizar qualquer horizonte democrático, ou mesmo do retorno a um status quo ante bellum[4], ou mesmo a um gerencialismo social estatal negociado, à velha moda, que recoloque na pauta a dúbia agenda da “capitalização” dos pobres pela via do consumo. Esse horizonte não está mais à vista.

Portanto, prezados e prezadas, eles estão vencendo à larga essa batalha.

E o Capitão seguirá sua pregação, conseguindo impor a sua verve tosca e escatológica, de que o melhor para os brasileiros é “o cada um por si, já que o ‘Estado’ é um centro de corrupção” (entendam: a esquerda em geral, os democratas em geral, os LGBTQ+, os negros e pobres, os pobres em geral, os educados, os índios, os quilombolas, os cientistas, os ecologistas, os professores e estudantes que pensam…). E, por dentro, os comandados do capitão seguirão demolindo as já insuficientes e inadequadas estruturas do Estado, sob aplausos de milhões, aí incluída imensa parcela de miseráveis e o que se definia, “no tempo das antigas”, como o lumpesinato[5] que aplaude a construção da escada que levará milhões de brasileiros ao cadafalso da exclusão e da eliminação dos direitos sociais mínimos.

Tornar novamente o país apequenado e insignificante é estratégia em acelerado curso, demonizar para destruir o Estado, desmobilizar a sociedade civil como um não-sujeito, facilitando assim a destruição de toda forma de solidariedade e de proteção social, em especial aquelas que obrigatoriamente necessitam da presença do Estado.

“Eu me pergunto… Quem manda neste país?… O Brasil é um país que depende profundamente do Estado” (Celso Furtado, cinebiografia, O Longo Amanhecer)

A arquitetura política e social de (re)moldar um país para os residuais e novos agregados da Casa Grande encontrou agora um capataz à altura da tarefa. O Capitão de má índole[6], expulso do Exército Brasileiro que agora lhe faz continência, reflete como nunca a essência dessa elite, historicamente definida por Darcy Ribeiro, Milton Santos, Jessé Souza e outros: preguiçosa, escravocrata, ignorante e covarde. O trabalho sujo, tosco, o capitão e suas milícias fazem.

“O Brasil tem uma classe dominante ranzinza, azeda, medíocre, cobiçosa, que não deixa o país ir pra frente” (Darcy Ribeiro, Ensaios Insólitos, Biblioteca Básica Brasileira, 1986)

A elite brasileira soube trazer a reboque eleitoral uma classe média historicamente medíocre e crescentemente imbecilizada pelas mídias do establishment e uma legião então crescente de desalentados e disponíveis, não só desalentados pela crise econômica em curso, mas abrigados sob a voz do mando e do comando de milhares de milicianos, charlatões fundamentalistas e outros párias sociais disponíveis. Os setores mais vulneráveis da população brasileira foram a massa que deu forma à tragédia, agora em acelerada marcha. Infelizmente, são parte daqueles que mais usufruíram das políticas sociais efetivas do período anterior. Mas isso é tema para outra conversa.

As pautas políticas da esquerda e do “gerencialismo de esquerda” não foram capazes de compreender e suportar a avalanche difusa dos movimentos de rua de 2013 e seguintes, vindo a sucumbir frente a pressão das ruas pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016. A regressão política, cultural, social, ética e moral do que se seguiu é tão grande… que pode piorar. Muito a pensar, até outro amanhecer, que infelizmente será longo.

Porém, o que está feito não se está por fazer. Temos que seguir. Tenho para mim que a massa de eleitores que levou o capitão à vitória, não só sabia o que queria com seu voto, como apoiava e desejava uma ruptura institucional (um tanto difusa, mas ruptura), apostando que o caos que a esquerda e os democratas em geral previam com a vitória do capitão não seria capaz de superar o “caos organizado” que ele seria capaz de comandar, até recolocar o país definitivamente no caminho do crescimento econômico e longe dos velhos e novos imaginários fantasmas, sempre ressuscitados em toda crise pela direita de sempre (comunismo e ateísmo, agora somados ao sexismo, venezuelização e outras “ameaças”). Em outras tragédias, que ficaram “a meio pau”, isso já se desenhara em outros formatos, com Jânio Quadros, Collor de Melo e Michel Temer. Nos temas desse discurso tradicional, não existiram novidades de destaque. Mas a “proposta de ruptura”, somada às fraudes eleitorais que se seguiram – e que já tinham sido largamente utilizadas na eleição de Donald Trump nos EUA[7], amplificaram decisivamente o alcance dessa “proposta”, levando-a à vitória, dispensando até os inputs de boçalidade do então candidato.

Em outra oportunidade, entraremos um pouco mais na discussão da “distopia” em curso, num possível entendimento do esgotamento do discurso ou na motivação da postura refratária de grande parte da população brasileira ao discurso e à prática política e social da esquerda – fenômeno que explodiu no processo eleitoral, ultrapassando a resistência tradicional da classe média. Enfim, tentar compreender melhor o alcance futuro dessa demolição política, econômica, e cultural em curso na vida social brasileira.

Nestes tempos apequenados, João Guimarães Rosa (lembram-se? Era diplomata!), o mais universal dos escritores brasileiros, nos socorre no porvir e na necessidade de pensar grande:

“Todos estão loucos neste mundo? Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total” (J.G. Rosa, Grande Sertão: Veredas, 1994, v.2, p. 327)

Para citar esse artigo: Lima, César Cristiano. “O longo amanhecer”. Estadosfera, 2019. Disponível em: Acesso em xx de xxxx de 20xx.

Notas

[1] Celso Furtado (1920/2004) foi um economista brasileiro, nordestino, nascido em Pombal, sertão da Paraíba, e reconhecido mundialmente como um dos mais destacados intelectuais do país ao longo do século XX. Para a economista Maria da Conceição Tavares, Furtado “foi o único grande pensador da economia brasileira do século XX, um homem da ação, um homem moral”. Suas ideias sobre o desenvolvimento econômico e o subdesenvolvimento enfatizavam o papel do Estado na economia. Nos anos 1950 fez parte da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal). Com suas ideias sobre o desenvolvimento, o subdesenvolvimento e o papel do Estado, exerceu grande influência no pensamento e na formulação das doutrinas econômicas em toda América Latina. Foi ministro do Planejamento no governo João Goulart. Com a edição do Ato Institucional nº 1, pós golpe militar de 1964, Celso Furtado foi incluído na primeira lista de cassados, perdendo seus direitos políticos por dez anos. No período pós anistia de 1979 e redemocratização do país foi ministro da Cultura no governo José Sarney.

[2] Furtado, Celso. O Longo Amanhecer: ensaios sobre a formação do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1999.

[3] Para conhecer mais sobre o tema, indicamos o livro A Era do Capital Improdutivo – A nova arquitetura do poder: dominação financeira, sequestro da democracia e destruição do planeta, do economista Ladislau Dowbor. Editoras Outras Palavras e Autonomia Literária, 2017.

[4] Status quo ante bellum, no sentido de retornar a uma situação em que estávamos “antes da batalha”.

[5] O lumpesinato (Marx) é a camada social carente de consciência política, constituída pelos que vivem na miséria extrema e por indivíduos direta ou indiretamente desvinculados da produção social e que se dedicam a atividades marginais.

[6] No sentido que dá a esta expressão o geógrafo Milton Santos: “A má índole associada à falta de educação leva ao racismo, ao preconceito e até à marginalidade”.

[7] Sobre o que aconteceu na eleição brasileira de 2018, é importante conhecer os movimentos da direita internacional que a precederam e prepararam. Boas referências são os livros Medo: Trump na Casa Branca, de Bob Woodward, Editora Todavia, 2016; e, Fogo e Fúria – Por Dentro da Casa Branca de Trump, de Michael Wolff, Editora Objetiva, 2016.

Sobre César Cristiano Lima 2 Artigos
Administrador de Empresas, Pós-graduado em Ciência Política