Borges Lemos: Crise se aproxima com agenda desafiadora e sem soluções simples

Brasil em crise, economia mundial próxima a uma crise. O que podemos esperar para o país no próximo período? O economista Maurício Borges Lemos responde a questões formuladas por Estadosfera. PhD em Economia, Diretor do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES durante os Governos Lula e Dilma, Maurício aponta que, diante da estagnação em curso, “o BNDES é tornado desnecessário”, ao contrário do “mito do suposto custo fiscal do BNDES”, alegado em relação à sua atuação na última década, quando, na verdade, foi responsável pelo incremento da taxa de investimento. Para ele, a Lava Jato, ao invés de se limitar a “penalizar a pessoa física, atingiu mortalmente a pessoa jurídica”, contribuindo para “um colapso do processo de investimento”.

Sobre a Reforma da Previdência, aponta que, apesar de todas as críticas, ninguém diz claramente que “a previdência complementar, em regime de capitalização, não existe no Brasil” e, portanto, “não há, no mercado, um produto que garanta uma renda vitalícia real no futuro”. Quanto à crise capitalista que se descortina, alerta que, para “nós da periferia capitalista estagnada e subdesenvolvida, há uma agenda desafiadora para criação de riqueza e distribuí-la da melhor forma possível”, sem “atalhos e soluções simples, como o estatismo salvador”. Veja abaixo a entrevista na íntegra.

1. A atuação do BNDESBanco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social tem sido criticada pelo Governo Jair Bolsonaro como antro de benesses. Qual papel o banco desempenhou na última década? Quais os projetos que estão hoje em disputa para o banco e o financiamento do desenvolvimento industrial no país hoje?

Na última década, até 2014, o BNDES avançou muito no apoio à construção da infra estrutura física (transporte, energia, comunicações, saneamento), expansão do apoio às MPMEs de todos tipos, apoio à indústria (embora limitada pela política cambial brasileira), apoio às exportações de máquinas, equipamentos e serviços de engenharia (igualmente limitadas pela política cambial) e apoio à internacionalização das grandes empresas brasileiras, a começar pela Petrobrás, na qual ampliou o equity e os próprios financiamentos. Como resultado, o volume de financiamentos e novas participações acionárias do Banco saltou de pouco mais de 2% do PIB, no início dos anos 2.000, para cerca de 3,5% do PIB no triênio 2011/2014. E, respondendo a isto, a formação bruta de capital fixo – FBKF, em percentual do PIB, saiu do patamar secular de estagnação de cerca de 15% do PIB para cerca de 20,5%.

Este salto nos investimentos pagou com sobras, via efeitos multiplicadores e aceleradores e sua repercussão nos impostos arrecadados, o mito do suposto custo fiscal do BNDES, naquela época dado pela diferença entre a SELIC e a TJLP. Atualmente, desde o processo do golpe, iniciado em 2015, a economia está na marcha batida da estagnação, e, neste contexto (estagnado, com FBKF em 15% ou abaixo), o BNDES é tornado desnecessário. Hoje, em 2019, é possível que o nível dos financiamentos seja pouco superior a 1,0% do PIB. E o limite inferior é o próprio fechamento do Banco.

As empresas da indústria pesada da construção civil envolvidas (Odebrecht, Andrade Gutierrez, Mendes Júnior, OAS, Camargo Corrêa, Queiroz Galvão etc) sempre foram centrais para o desenvolvimento econômico no país. Do modo como a Força Tarefa da Lava Jato e o Judiciário conduziram os processos, tiveram seus negócios frontalmente atingidos. Quais têm sido as consequências desse tratamento para economia brasileira? Como reerguer esse segmento?

A Lava Jato atingiu um dos núcleos centrais do processo indutor dos investimentos (a Petrobrás), bem como o núcleo central da materialização física dos investimentos, as empresas da indústria de construção civil pesada. Ao invés de penalizar a pessoa física, atingiu mortalmente a pessoa jurídica, inviabilizando as empresas. Houve, então, a partir de 2015, um colapso do processo de investimento, que levou a uma recessão profunda da qual ainda não houve recuperação. O próprio nível dos investimentos está hoje cerca de 25% abaixo do de 2014. Para recuperar, o primeiro ponto é abandonar a política econômica do ‘se Deus quiser, os investimentos irão acontecer’ e retomar à política anterior, corrigindo e sanando suas deficiências e insuficiências, que eram muitas. E claro que isso é absolutamente impossível com o governo que aí está.

Entre o início dos anos 80 e o momento atual, de um lado, conquistamos estabilidade monetária e lançamos fundamentos para estabilidade fiscal, do outro, o Estado Brasileiro manteve o histórico perfil burocrático-financeiro centralizador, tendo os Estados perdido qualquer real condição de auto-financiamento e o número de municípios crescido sensivelmente, na sua maioria, porém, sem capacidade administrativa e financeira para enfrentar os desafios de políticas públicas. O dinheiro no país continua caro para investimentos. Quais vantagens e limites que a economia brasileira dispõe hoje para entrar em novo ciclo virtuoso de crescimento?

O importante é conseguir estabilidade de preços, estabilidade fiscal e desenvolvimento. Na estagnação, que é a situação prevalecente do Brasil desde 1980, não há estabilidade fiscal, e as contas públicas tendem a se agravar. E, mesmo estagnado, qualquer choque, especialmente cambial, tende a produzir inflação (vide, por exemplo, o caso crônico da Argentina). Portanto, na estagnação, você tem um problema crônico de restrição de oferta, que é o problema central de qualquer economia subdesenvolvida. Sair deste círculo vicioso é o desafio central de qualquer política de desenvolvimento.

Questões críticas da Reforma da Previdência como o déficit crescente das Previdências Próprias dos Estados e a desvinculação das receitas da União, que atingem as fontes de financiamento da Seguridade Social, não fazem parte desta agenda. Qual o impacto que a Reforma efetivamente terá para alavancagem do crescimento?

A reforma previdenciária, que deveria estar sendo feita, teria de ter por referência o regime próprio estatutário dos três níveis de governo. E, neste contexto, atacar as iniquidades. Entre elas, o regime de pensões. Essa é, também, a única questão que deveria ser alterada na previdência básica, seja no INSS, seja nos regimes estatutários. Na pensão por morte, o dependente permanente (em geral, cônjuges) deveria ter idade próxima à do titular para que o beneficiado recebesse 100% do valor da aposentadoria. Na medida em que essa diferença se ampliasse, deveria haver uma redução (um critério seria aplicar uma taxa atuarial de desconto de 6% aa). Seu objetivo seria evitar, num sistema essencialmente de repartição, que o mecanismo das pensões traga, o que acontece atualmente, um ‘fura fila geracional’, onerando, indistintamente, todo o sistema previdenciário, no básico ou no estatutário para qualquer nível de renda.

Por outro lado, mesmo que a reforma fosse feita na direção certa, conseguiria aumentar os investimentos públicos de forma mais significativa apenas nos estados e municípios. Quanto aos investimentos privados, é discutível que afetem as condições objetivas microeconômicas para o investimento num país periférico como o Brasil. Neste caso, a cartilha neoliberal propõe que, seDeus quiser’, com a mudança na expectativas com a reforma, os investimentos irão acontecer. Mas ‘Deus pode não querer’

Previdência complementar, em regime de capitalização, não existe no Brasil. Não há, no mercado, um produto que garanta uma renda vitalícia real no futuro.

Há ainda um ponto que o item reforma da previdência poderia ser relevante para a retomada dos investimentos e se refere à questão da previdência complementar. O (Ministro) Guedes propôs duas coisas inaceitáveis, sendo que apenas uma delas ficou visível e foi criticada por todos, até mesmo pela maioria do Congresso: a substituição da previdência básica por um sistema de capitalização, a ser gerido pelo sistema financeiro. Mas passou batido, mesmo entre os membros da oposição, o fato de que a previdência complementar, em regime de capitalização, não existe no Brasil. O que existe é apenas um nome fantasia, utilizado indevidamente pelo sistema financeiro, que recebe, inclusive, incentivo tributário, mas que, na essência, não constitui um seguro previdenciário.

Na verdade, a partir de uma contribuição definida, não há, no mercado, um produto que garanta uma renda vitalícia real no futuro. A construção de uma verdadeira previdência complementar, que poderia resolver um problema de largas parcelas da população brasileira, ajudaria a resolver, ao mesmo tempo, a questão do funding para o desenvolvimento do Brasil, especialmente na montagem da infraestrutura física, já que seria muito menos exigente, em termos de taxa de retorno, do que os capitais privados, alçando o país para o patamar dos países desenvolvidos. Para isso acontecer, é necessária a construção de uma governança complexa, que, na minha proposta, passaria decisivamente pelo BNDES.

A implementação do pré-sal levaria o país à 4ª economia do planeta.  Ele foi adiado diante da conjuntura econômica internacional. Inclusive o Fundo Soberano criado durante o Governo Lula, que era esperança de investimentos sociais, foi extinto no mês passado. A próxima geração pode contar com a retomada do pré-sal e os transbordamentos que se esperavam que ele promoveria, sobretudo para a indústria naval, metalúrgica e petrolífera no país?

Dentro de um novo ciclo de desenvolvimento sim, é possível. Mas a sublinhar que os pontos de partida para os transbordamentos estão sendo ou já foram destruídos, o que implicará a necessidade de começar tudo de novo.

Entre 2012 e 2013, o Governo Dilma, na gestão do Alexandre Tombini, iniciou o processo de redução da taxa de juros no país, que foi retomado no período Temer. Hoje, a taxa SELIC encontra-se em 6,5%, bem distante do patamar histórico de mais 14,0%. Podemos considerar que esta se tornou uma condição estável, sem retorno. O que ela representa para a retomada do crescimento econômico?

Recentemente, o André Lara Resende, contrariando o consenso neoliberal, publicou uma série de artigos sobre a questão monetária, fiscal e inflação, aproximando-se bastante do Keynesianismo e de correntes heterodoxas do pensamento econômico atual. Em síntese, ele propõe que, embora o BC, entre outras funções regulatórias, controle os juros, é bastante improvável que estes, por si só, consigam alavancar os investimentos. Neste sentido, o principal sentido dos juros baixos é ajudar a manter a dívida pública sob controle. Da mesma forma, os juros altos não ajudam a controlar a inflação, a qual é formada por expectativas e por restrições de oferta. Então, concordando com ele, diria que 6,5% (ou menos) é insuficiente para alavancar os investimentos, embora ainda seja muito alto na comparação internacional ou para manter sob controle a dívida pública.

Mas nada impede que, diante de uma crise cambial, que constitui o principal sintoma de restrição de oferta no nível de um país, o Banco volte a tratar um problema estrutural – tipicamente de uma economia periférica – com largas doses de morfina, que pode agravar em muito o próprio problema. Afinal, o (presidente) Macri, na Argentina fez exatamente isso recentemente, o que aprofundou a própria crise cambial. E para sair do círculo vicioso que leva à crise cambial, deve-se tomar medidas de curto, médio e longo prazo que levem ao aumento das exportações de bens e serviços.

O Governo Lula fez uma opção expressa pelo desenvolvimento ancorado no incremento do consumo das famílias, embora não tenha conseguido desembaraçar um conjunto de restrições para a superação dos gargalos de infraestrutura logística e a relação com a iniciativa privada. Ao mesmo tempo, o enfrentamento da crise de 2010 pelo Governo Dilma Rousseff valeu-se de instrumentos ortodoxos, que contribuíram para por em questão os avanços obtidos no período anterior. Neste contexto, vemos que o campo progressista não realizou ainda uma crítica clara sobre as opções de política econômica durante a crise e também não conseguiu trazer a público premissas para um projeto alternativo de desenvolvimento. A questão é: temos ou não temos projeto alternativo neodesenvolvimentista ou sociodesenvolvimentista para o próximo período?

A resposta correta para esta questão é que avançamos em muitos pontos e deixamos a desejar em outros, o que caracterizaria o projeto como inacabado. Por exemplo, em infraestrutura, avançamos bastante na oferta de energia elétrica, com volta da construção de grandes hidrelétricas e a utilização de novas fontes renováveis, como as PCHs e, principalmente, as eólicas. Em 12 anos, a capacidade de oferta de energia mais que dobrou, e foi evitado o que seria um segundo apagão, mesmo que a economia, no período, tenha crescido quase o dobro do período FHC (Fernando Henrique Cardoso). Mas o problema é que, no conjunto da infraestrutura, para que o país viesse a dar o salto necessário, seria imprescindível a utilização criativa de um verdadeiro arsenal de instrumentos: como a taxa de retorno é baixa ou virtualmente nula para boa parte dos investimentos necessários, dever-se-ia combinar funding de financiamentos a taxas aceitáveis (BNDES), garantias firmes nas concessões estatais centradas em PPPs (Parcerias Público Privadas), ao lado de funding (equity) com exigência de taxa de retorno dos fundos previdenciários (em torno de 6% aa) ao invés das referências descabidas dos capitais privados (exigência de taxa de retorno a partir de 10% aa). Tudo isso poderia e pode ser montado, mas teria de ser detalhadamente estruturado dentro de um projeto consistente de desenvolvimento.

Duas restrições de oferta estruturais da economia brasileira – as limitações de sua infraestrutura física e de sua pouco dinâmica base de exportação de bens e serviços – vieram à tona por volta de 2013.

Para completar, a falha mais grave: praticou-se, de forma velada, o populismo cambial, sem, ao mesmo tempo, se procurar alternativas firmes para garantir uma base exportadora de bens e serviços competitiva e dinâmica. Então, as duas restrições de oferta estruturais da economia brasileira – as limitações de sua infraestrutura física e de sua pouco dinâmica base de exportação de bens e serviços – vieram à tona por volta de 2013, materializadas numa taxa desemprego muito baixa (beirando os 4%, um fato que seria positivo se pudesse ser isolado dos demais fatores), baixo crescimento da produtividade, no fim do bônus das commodities exemplificado na retomada da desvalorização do câmbio, na volta da inflação, determinada pelo pleno emprego e pelo choque cambial e amplificada pela estrutura tributária criminosamente regressiva, herdada e, infelizmente, consolidada no ciclo petista.

O mundo todo aguarda uma continuação da Crise de 2010 nos próximos meses. Além dos problemas de liquidez e discussão de um novo padrão monetário internacional, temos as profundas mudanças no processo de trabalho que vem se disseminando desde os anos 90. Naquela época, o senhor publicou um artigo discutindo esta nova condição de submissão do capital intelectual pelas tecnologias da informação – TIs para o processo produtivo. Temos pela frente mais uma crise financeira do capitalismo ou podemos falar em uma crise das bases do modo de produção capitalista? Qual a real dimensão das mudanças em curso?

Esperava-se que a Era das TIs representasse uma quinta revolução industrial e inaugurasse uma nova onda de crescimento econômico, tal qual nas quatro revoluções industriais anteriores, configurando um ciclo de aproximadamente 50 anos que os economistas batizaram de Kondratief, o economista russo que foi o seu descobridor. Neste caso, o ciclo da quarta revolução industrial foi iniciado por volta de 1940, teve seu auge na metade dos anos 60, e o período de crise e crescimento muito baixo nos anos 70 e 80. Por volta de 1990, iniciou-se auspiciosamente a Era das TIs, liderada pelas novas empresas deste novo ciclo. E, aparentemente, embarcando nesse novo ciclo, e procurando se confundir com ele, tivemos um avanço sem precedentes do capital financeiro, o qual tomou de assalto as finanças dos principais países, e, não menos importante, avançaram para a financeirização das próprias empresas. Ideologicamente, o colapso da antiga URSS, (cujo sistema stalinista estatal, em crise desde os anos 70, sucumbiu às exigências e flexibilidades da Era das TIs) foi a evidência factual que ajudou nesta hegemonia neoliberal.

Mas os problemas deste novo ciclo começaram bem antes dos cerca de 25 anos dos períodos de períodos de prosperidade das revoluções industriais anteriores. Já em 1999, a bolsa americana NASDAQ, que abriga as empresas de TIs, teve uma crise muito séria, em que houve o estouro de um séria bolha especulativa. A partir daí, o ciclo econômico passou a ser puxado por um surto imobiliário quase sem precedentes (a não ser aquele dos anos 20 do século passado nos EUA), que desembocou na crise da bolha de subprime nos EUA e parcialmente na Europa. Com isso, ultrapassamos o que seria a metade mais virtuosa do que seria o ciclo Kondratief (aproximadamente, os primeiros 25 anos, desde 1990) com crises muito sérias e, na média mundial, relativamente baixa taxa de crescimento, a despeito do fenômeno China. A tese do historiador e jornalista britânico, Paul Mason, é que as TIs, embora muito positivas em vários sentidos, são incompatíveis para a criação sistemática de mais valor, sendo mais apropriadamente consideradas como destruidoras de valor.

Para nós da periferia capitalista estagnada e subdesenvolvida, há uma agenda desafiadora para criação de riqueza e distribui-la da melhor forma possível. Não há atalhos e soluções simples, como o estatismo salvador.

E a única saída para isso, do ponto de vista capitalista, é a criação de monopólios artificiais não sustentáveis a longo prazo. E, neste caso, a lista de empresas gigantes vai se reduzindo, criando as limitações políticas e o declínio político do discurso neoliberal. Então, o que fazer, especialmente para todos aqueles que lutam pela justiça social? Há já algumas propostas na mesa, sendo que o próprio Paul Mason dá algumas respostas, com o seu conceito de pós-capitalismo. Thomas Piketty, que tem uma visão complementar e coerente com esse quadro, também adianta algumas propostas.

No limite, e, sobretudo, para nós da periferia capitalista estagnada e subdesenvolvida, há uma agenda desafiadora para criação de riqueza e distribui-la da melhor forma possível. Não há atalhos e soluções simples, como o estatismo salvador, como pregam muitos saudosistas do stalinismo. Ou mesmo o cooperativismo e autogestão, na linha sugerida por Paul Mason, enfrentam problemas intrínsecos de gerenciamento. A solução está no equacionamento desta equação: sem o Estado, é impossível, com o Estado é terrível (ou quase impossível). A curto prazo, as medidas fiscais e tributárias adotadas por Trump deram um alento para o nível de atividade nos EUA. Entretanto, elas já estão vencidas e a desaceleração está a caminho. E a nível internacional, o cenário já é de franca desaceleração. É provável mais uma recessão internacional à vista.

Sobre Wieland 53 Artigos
Wieland Silberschneider é Doutor em Economia e Mestre em Sociologia pela Universidade de Minas Gerais.