Lei da Anistia: 40 anos depois, o risco de retrocesso

No dia 28 de agosto, completaram-se 40 anos de promulgação da Lei da Anistia. Ela representou a validação do início do fim da Ditadura Militar, que se consolidaria, uma década mais tarde, em 1989, com a eleição direta para presidente. Mais do que isto, com todas as suas contradições, a lei pavimentou as novas condições da esfera pública no país, o que possibilitou o desenvolvimento econômico, político e social que se seguiria nos anos seguintes. Passadas quatro décadas, porém, retorna ao debate nacional, com o Governo Jair Bolsonaro, a possibilidade de sua revisão.

O ex-deputado e ex-Ministro dos Direitos Humanos, o jornalista Nilmário Miranda, atualmente representante do Sindicato dos Jornalistas no Conselho Estadual de Direitos Humanos, participou da luta pela anistia, desde o início, tornando-se referência em Minas e no país. Em entrevista ao Estadosfera, Nilmário conta que “a ditadura já havia reservado para si a prerrogativa da iniciativa de lei sobre Anistia“, criando senadores biônicos e garantindo a representação no Congresso com a transformação dos territórios em estados. Destaca que a Lei da Anistia aprovada não incluiu os “crimes conexos”, tornando o Brasil “o único país que não pune nem mesmo os crimes contra a humanidade”. Sobre a atualidade, fala do risco de retrocesso das conquistas da redemocratização: “a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos foi ocupada por militares e um civil, que defendem a ditadura responsável pelas mortes e desaparecimentos de opositores” e “o lawfare, o direito penal do inimigo, o desmonte gradual das instituições democráticas, é um caminho que ameaça a própria democracia”.

A Lei da Anistia (Lei n° 6.683, de 28 de agosto de 1979) foi resultado da mobilização da sociedade brasileira na luta pelo fim da ditadura. Qual papel ela desempenhou na redemocratização do país?

A luta pela anistia ganhou centralidade e primazia após o fim da vigência do AI-5, em dezembro de 1978. Fim da censura, volta do habeas corpus para crimes políticos, fim da cassação de mandatos, desativação dos centros de detenção e tortura, para ficar só nestes instrumentos do arbítrio. Como de fato aconteceu, o retorno de mais de dez mil exilados, asilados, banidos, levou à reorganização de partidos políticos. A luta pela Anistia, encampada pelas classes médias, produziu a mais notável conversão com Teotônio Vilela, usineiro, eleito senador pela Arena (Aliança Renovadora Nacional), que cruza o país, visita os prisioneiros políticos em seus cárceres e diz ter encontrado patriotas e seres humanos grandiosos, ao invés de “terroristas”. Como se sabe, a ditadura já havia reservado para si a prerrogativa da iniciativa de lei sobre Anistia. Além disso, os militares, no Pacote de Abril de 1977, criaram os senadores biônicos, transformaram território em estados com, no mínimo, 8 deputados e, com as regras de coeficiente eleitoral, garantiu para a Arena a maioria, mesmo com menos votos que o PMDB, para impedir a Anistia e garantir os votos para Figueiredo, o último ditador. O que impressionou foi que o substitutivo ao PL do Governo, que garantia a Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, e não incluía os “crimes conexos“, o que gerou a impunidade para os carrascos e algozes, perdeu por apenas 5 votos! Não houve um acordo como alegou o STF (Supremo Tribunal Federal) em 2010. Houve uma derrota do projeto da Anistia Ampla, Geral e Irrestrita.

Nilmário Miranda

A campanha da anistia contou com a organização do Comitê Brasileiro de Anistia e comitês locais. Além disso, foi notório o papel das mulheres na mobilização social durante os anos 70 e na aceleração do processo de anistia. Como se deu este processo em Minas Gerais? Quais foram os principais atores envolvidos?

O Movimento Feminino pela Anistia nasceu em São Paulo-SP, sob a liderança de Terezinha Zerbini. Em Minas, foi instalado por pessoas como Helena Greco, por familiares de exilados e banidos como D. Ondina Nahas, Ângela Pezzutti, Elisa Lana, por militantes da luta pela democracia, como Magda Neves, por ex-presas e familiares de mortos e desaparecidos políticos. Reuniam-se em igrejas, sob o abrigo da Igreja. Mais à frente, surge o Comitê Brasileiro pela Anistia e aí somaram-se pessoas como Betinho Duarte, os grandes advogados de presos políticos, o movimento estudantil, os Sindicatos dos Jornalistas e dos Médicos, os jornais alternativos. A Anistia torna-se movimento social, quando Elis Regina cantou “O bêbado e o equilibrista” no Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Mil e duzentas (1200) pessoas, de pé, cantaram com ela.

O Brasil torna-se o único país que não pune nem mesmo os crimes contra a humanidade.

Na concepção da lei, foram igualmente anistiados os agentes do Estado. Como isto impactou na época a vigência da lei e como podemos avaliar as consequências desta opção na atualidade?

A rigor, a expressão “crime conexo” não deveria ser dada como impunidade. Conexo é, por exemplo, o uso de identidade falsa num assalto. Uma jurisprudência foi forjada pela Justiça Federal. Ainda era o Regime Militar que duraria seis longos anos. O PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), a direita civilizada, o PFL (Partido da Frente Liberal), que rompeu com o PDS (Partido Democrático Social), toda a mídia, produziram a tese da Anistia para os torturadores. Desse modo, mesmo o crime do Riocentro, cometido após a Anistia, deveria redundar em impunidade. Anistia, até então, era instituto para vítimas do Estado autoritário. O Brasil torna-se o único país que não pune nem mesmo os crimes contra a humanidade.

Em maio de 2012, foi instalada a Comissão Nacional da Verdade (Lei 12.528/2011) pela Presidenta Dilma Roussef. Como você analisa o trabalho da Comissão em relação à Lei da Anistia?

A Comissão Nacional da Verdade – CNV foi aprovada pelo Congresso Nacional por todos os partidos e sancionada no Palácio do Planalto com a presença de Sarney, Collor, Fernando Henrique e Lula por Dilma. Fez um trabalho sério, correto, baseado em documentos e testemunhos com a devida publicidade e transparência. O relatório da CNV deveria ser a referência para o avanço da Justiça de Transição, o que não aconteceu e, ao contrário, a partir da eleição de um defensor da tortura, da ditadura, inicia-se um grave retrocesso.

A Ministra Damares encarrega-se de desmantelar os direitos humanos ao nomear, para a Comissão da Anistia, civis e militares que defendem ou justificam a tortura e a ditadura.

O site Memórias da Ditadura (http://memoriasdaditadura.org.br/) contabiliza 50 mil presos nos primeiros meses do Regime Militar de 1964; 7.367 pessoas acusadas nos termos da Lei de Segurança Nacional (10.034 inquiridos); 130 banidos; 4.862 cassados; 6.592 militares punidos; 245 estudantes expulsos da universidade; 388 mortos e desaparecidos (426 se contados os que morreram por sequelas da tortura no exterior); cerca de 10 mil brasileiros, compelidos a deixar o país, teriam vivido no exílio em algum momento. Quarenta anos depois da Lei de Anistia, o Governo Bolsonaro faz nova investida na tentativa de negar e apagar da história os crimes de Estado, os crimes contra a humanidade e o terrorismo de Estado que vigorou de março de 1964 a 1985, falando-se, inclusive, em revisão da lei suspensão de indenizações. O que deu errado com a anistia e com a redemocratização brasileira?

A Comissão da Anistia foi instrumento primordial da Justiça, ao reparar dezenas de milhares de civis e militares que perderam os vínculos laborais por perseguição política, de estudantes expulsos, de pessoas compelidas ao exílio, aos cassados, aos torturados. A Ministra Damares encarrega-se de desmantelar os direitos humanos. Nomeou, para a Comissão da Anistia, civis e militares que defendem ou justificam a tortura e a ditadura. A Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, que reconheceu os 434 mortos e desaparecidos como responsabilidade do Estado e estava buscando os restos mortais dos desaparecidos, foi ocupada por militares e um civil, que defendem a ditadura responsável pelas mortes e desaparecimentos de opositores. Que encerrou o Memorial da Anistia e as Clínicas de Testemunho. Ou seja, interrompeu a construção do processo indispensável da Justiça de Transição.

O lawfare, o direito penal do inimigo, o desmonte gradual das instituições democráticas, é um caminho que ameaça a própria democracia.

Em 1979, ano da Anistia, apesar do país viver sob uma ditadura (General João Figueiredo era o presidente), o Brasil tinha lideranças políticas fortemente representativas à direita e à esquerda, tais como Ulysses Guimarães, Teotônio Vilela, Severo Gomes, Petrônio Portela, além de fortes lideranças que retornavam do exílio: Leonel Brizola, Miguel Arraes, Luiz Carlos Prestes, e centenas de militantes sociais e sindicalistas que despontavam. Hoje, há estamos diante de um deserto de lideranças. A única liderança política de massas do país está presa e vivemos um retrocesso político brutal, sob o véu da legalidade interpretada e operada pela institucionalidade constituída, Judiciário e Parlamento, ao sabor das conveniências de interesses particulares. Caminhamos para uma ditadura de novo tipo?

Está sendo criado um consenso, dentre juristas e democratas do mundo de que o lawfare, o direito penal do inimigo, o desmonte gradual das instituições democráticas, é um caminho que ameaça a própria democracia. O impeachment de Dilma sem crime de responsabilidade, a prisão de Lula sem provas e seu impedimento eleitoral, possibilitando a vitória de uma pessoa tão nefasta, a escolha do juiz que condenou Lula como Ministro da Justiça como prêmio pelos serviços prestados, tudo isso afronta o próprio pacto que levou à Constituição de 1988, que constituiu um projeto de nação soberana livre e permeada pela busca da justiça. De fato, não vislumbro senão Lula como única liderança capaz de reunir uma maioria que  interrompa essa marcha da insensatez.

Sobre Wieland 53 Artigos
Wieland Silberschneider é Doutor em Economia e Mestre em Sociologia pela Universidade de Minas Gerais.