Mais do que o Coronavírus, a Coronacrise: aonde vamos chegar?

Há cerca de 2 meses, quando se iniciou o processo de propagação do coronavírus e a imposição das medidas de isolamento social com a consequente desaceleração das atividades econômicas, todos nós nos perguntamos até quando isso vai durar. A inspiração que nos faz pensar que ‘não há alegria que dure para sempre e tristeza que nunca acabe’ nos traz esperança de que o combate ao vírus tenha sucesso e, logo, voltemos à normalidade. Contudo, há muito mais coisa entre o vírus e o que estamos passando do que possa imaginar a nossa fértil imaginação…

A desorganização promovida pandemia gerada pelo coronavírus não irá embora simplesmente com o controle do vírus. A pandemia trouxe consigo uma crise econômica, que, embora muito tenha a ver com ela, na verdade, bem pouco tem a ver. Muito, porque foi, a partir de janeiro desse ano, com o reconhecimento pelo Governo Chinês da aceleração dos casos de contaminação pelo coronavírus, que o processo de desorganização da economia mundial inicialmente se manifestou. No esforço para conter a expansão da ainda epidemia, a China determinou o isolamento social, paralisou atividades industriais e comerciais, fechou fronteiras. Na sequência, registrou desaceleração de “13,5% na produção industrial, cuja participação no PIB mundial é de quase 20% (FMI, 2019)” (Mello et alli, 2020:2). Diante do sucesso da profilaxia epidemiológica, os países, que foram registrando casos de contaminação, seguem na mesma direção, impondo restrições à circulação de pessoas e desencadeando a diminuição do ritmo de suas economias, como é o caso do Brasil. E, certamente, em todos países, o esforço para o controle da disseminação do Covid-19, que prosseguirá por mais 3 a 6 meses assim como o tempo para a chegada da vacina, que demorará, em escala planetária não menos do que 18 meses, resultará no aprofundamento da desaceleração- e, em muitos casos, na falência de vários negócios.

A pandemia como gatilho da crise econômica

Por outro lado, embora a história venha, certamente, denominar esta crise como ‘Coronacrise’, pouco ela tem a ver com o coronavírus. A pandemia foi apenas um gatilho, não sua causa. Já era esperado um debacle financeiro, desde a Crise de 2008. Principalmente diante do incrível aumento da liquidez no mercado financeiro internacional provocado pelas vultosas ajudas dos Estados Nacionais (e o consequente aumento de suas dívidas públicas) em todo o planeta, “na época, se falava que havia duas certezas sobre a crise: a primeira é que ela seria resolvida e a segunda é que outra viria”. Mais recentemente, os analistas vinham dizendo sobre a inevitabilidade de uma nova crise. No YouTube, encontramos análises, que, já em 2018, apontavam o 1º semestre de 2020 como período mais provável para seu desencadeamento. 

A pandemia foi apenas um gatilho da Coronacrise, não sua causa. Já era esperado um debacle financeiro, desde a Crise de 2008.

Aliás, o Estadosfera.com.br publicou artigo ‘Crise Econômica Mundial começa dia 18 de Jan/2020, diz analista americano’, no início do ano, apresentando o modelo analítico do economista Martin Armstrong, que previa o início da crise no dia 18 de janeiro desse ano. Armstrong acertou. E mais: chamou premonitoriamente essa crise de “mãe de todas as crises”. A crise efetivamente começou, justamente na semana em que a China anunciou o início da então epidemia e provocou o debacle da economia global. No dia 21 de janeiro de 2020, os temores sobre a disseminação de um novo vírus na China fizeram o dólar disparar, no Brasil. A cotação da moeda superou os R$ 4,20 durante a manhã

Coronacrise e Crise do Subprime

O que ninguém antecipou é que o gatilho seria uma epidemia e que a crise atingiria a economia real. A Coronacrise se diferencia fundamentalmente da Crise do Subprime, vivenciada há praticamente uma década atrás, porque “ela tem início no mundo real, na esfera produtiva, para posteriormente impactar os mercados financeiro e de crédito […] o oposto da crise de 2008, que teve início no mercado de crédito imobiliário americano e logo se espalhou para o conjunto do setor financeiro para finalmente atingir a economia real” (Mello et alli, 2020:2). A necessidade do isolamento social como condição de eficácia para controlar o ritmo de espalhamento do vírus e, assim, minimizar o estrangulamento dos serviços de saúde, levou a medidas de proibição de circulação de pessoas e de funcionamento de negócios, desarticulando todos circuitos produtivos.

A Coronacrise se diferencia fundamentalmente da Crise do Subprime, porque teve início no mundo real, na esfera produtiva, para posteriormente impactar os mercados financeiro e de crédito.

No Brasil, o Setor Indústria, que representa 18% da economia nacional será inevitavelmente afetado pela crise demanda ao longo de sua evolução, mas é o Setor de Serviços quem, de modo geral, foi o primeiro e mais diretamente atingido. Em termos de emprego, congrega o maior número de trabalhadores (mais de 70%). Ele responde por 63% do Produto Interno Bruto – PIB. Seus principais segmentos, o Comércio que representa uma parcela de 12% deste percentual e outras 12 atividades, que compõem o grupo Outros Serviços, como alojamento, alimentação, educação e saúde privados, cultura e esporte, que são 15%, foram, certamente, os imediatamente atingidos. Além desses, Transporte, que corresponde a uma parcela de 4% desse setor, e o Setor Público (Administração, Saúde, Escolas Públicas e Seguridade Social), que é 15%, são também segmentos imediatamente atingidos, embora sujeitos a outra dinâmica econômica. A essa realidade se junta a economia informal, totalmente vulnerável, que corresponde, segundo o IBGE, a 41,3% da população ocupada.

O impacto esperado é tão grande que já se fala em 40 milhões de desempregados nos próximos meses, quase 40,0% da população economicamente ativa, quando hoje este número é de cerca de 12,6 milhões da população ativa, 11,8% da PEA. Nos EUA, o Presidente do FED de St. Lojista, James Bullard “vê a taxa de desemprego nos EUA atingindo 30% nos próximos meses, caso o mundo continue enfrentando a pandemia do coronavírus”.

Crise do capital financeiro

Contudo, apesar da relação imediata da desaceleração econômica com a pandemia, essa crise é radicalmente mais grave e estrutural do que os acontecimentos conjunturais que nos assustam. A crise explicita o esgotamento do regime de acumulação de capital, que se consolidou, nos últimos cerca de 50 anos, desde o fim do padrão ouro estabelecido a partir do Acordo de Breton WoodsEste regime se estruturou por meio da globalização de processos de valorização fictícia do dinheiro a partir de inúmeros subprodutos financeiros e do estabelecimento de subrelações do sistema financeiro com os sistemas produtivo e comercial, em uma geopolítica financeira internacional, na qual os esquemas de especulação financeira se apresentam como geração de valor e com eles se confundem como ‘investimento’ na retórica do mercado.

A crise explicita o esgotamento do regime de acumulação de capital, que se consolidou, nos últimos cerca de 50 anos, desde o fim do padrão ouro estabelecido a partir do Acordo de Breton Woods.

Neste capítulo da história, o capital financeiro encontra-se nu! Não bastará injetar trilhões de moeda como, por exemplo, Estados Unidos (6 trilhões de dólares) e Brasil (1,2 trilhão de reais) estão fazendo. Não se trata de socorrer instituições financeiras ou mesmo oferecer acesso a empréstimo a empresas de qualquer porte ou mesmo ao consumidor, como se fosse um problema de administração de fluxo de caixa. Trata-se do problema de paralisação da atividade produtiva, sob a condição de Estados Nacionais desaparelhados institucional e legalmente para (re)direcionar o fluxo de renda para empresas e trabalhadores. As atividades produtivas permanecerão por um tempo considerável ‘desativadas’. O Estado enfrentará dura quebra de arrecadação. Não será o suposto remédio para a aversão ao risco que será capaz de retornar à normalidade. “Por se tratar de uma crise com origem na paralisação da esfera produtiva, sua verdadeira saída ocorrerá apenas quando a situação sanitária for controlada ou houver algum tratamento/vacina eficaz para o vírus, possibilitando a retomada da produção em condições normais” (Mello, 2020:3). Contudo, enfrentará ainda os desafios para se redesenhar o regime de acumulação vigente.

Crise do modo de acumulação de riquezas

Ora, o fato da crise ter repercussão sobre a economia real não constituiu uma particularidade, mas uma dimensão estrutural do estágio em que nos encontramos no processo de acumulação de riquezas capitalista. Na base da dinâmica de geração fictícia de sobrevalor do capital financeiro, está em curso o aprofundamento da apropriação das novas formas de valorização do trabalho generalizadas pelos processos impostos pelas novas tecnologias de informação e comunicação, desde a segunda metade do século passado. Elas deslocaram, de modo inédito na história humana, a exploração do sobrevalor do trabalho manual, que se consolidou ainda no período das manufaturas, para o trabalho intelectual. Nos últimos trinta anos, as plataformas digitais lograram decantar a capacidade humana de acumular informações e estabelecer correlações significantes- e, assim, produzir conhecimento, bem como fazê-lo circular, propiciando condições objetivas para o controle de sua produtividade. Concomitantemente, esta nova condição levou à ampliação da automação da produtividade do trabalho manual.

Estamos diante da insurgência de novas bases para a acumulação de riquezas, que estão mudando o paradigma de geração de valor que se iniciou com o que chamamos de ‘capitalismo industrial’. Para alguns, trata-se da consolidação da Quarta Revolução Industrial ou Indústria 4.0, termo cunhado pelo engenheiro alemão Klaus Schwab, diretor e fundador do Fórum Econômico Mundial para caracterizar a mudança de paradigma na forma como vivemos, que, nas suas palavras, “muda nosso comportamento, muda nosso comportamento como consumidores, como nos comunicamos, como produzimos.” Estamos falando das transformações que envolvem as inovações do big data, da internet das coisas, da manufatura aditiva, da computação na nuvem, dentre outras questões.

Estamos diante da insurgência de novas bases para a acumulação de riquezas, que estão mudando o paradigma de geração de valor que se iniciou com o que chamamos de ‘capitalismo industrial’, e vem sendo chamado por alguns de Indústria 4.0 e por outros de Singularidade.

O cientista Raymond Kurzweil, atualmente responsável técnico da Google, cunhou outro termo para caracterizar essa profunda mudança paradigmática do modo de reprodução da existência humana: singularidade. Ela significa “a culminação da fusão da nossa existência e modo biológico de pensar com nossa tecnologia, resultando em um mundo que é ainda humano mas transcende nossas raízes biológicas”. Os seres humanos vão incorporar o que chamamos de ‘máquinas’ e se tornarão seres  singulares, em um processo velozmente exponencial em que chegaremos também à época das ‘máquinas espirituais’. Neste contexto, “não haverá distinção, pós-Singularidade, entre homem e máquina ou entre realidade física e virtual” (Kurzweil, 2005:9).

Todas essas considerações não são futurologia. Essas mudanças estão em curso. Ao longo das próximas décadas, a expectativa média de vida ao nascer dos seres humanos evoluirá para 120 anos, devendo chegar nas primeiras décadas do século XXII a algo entorno de 200 anos. A energia fotovoltaica, que substitui a energia gerada por termo-combustão, vai se generalizar em escala planetária, a partir da segunda metade desse século, trazendo-nos sua face mais visível, o carro elétrico. O escaneamento das sinapses do cérebro é esperada nos próximos 30 anos, abrindo possibilidades para download e upload de conhecimento, permitindo tanto o acúmulo extra-corpóreo de características cognitivas humana, quanto a agregação/ integração aos processos neurais-cognitivos humanos de informações exógenas tais como conteúdos científicos, legais, culturais. A inteligência artificial atingirá os níveis humanos e será capaz de passar por um Teste de Turing válido.  

Aonde chegaremos com a Coronacrise

Aonde iremos chegar com a Coronacrise é a pergunta que a todos angustia. Há resultantes restruturantes a serem vislumbradas diante da extensão do impacto da crise e, evidentemente, há as consequências imediatas que se desenham. Em relação a este último aspecto, é inquestionável a desestruturação da atividade econômica que se desenha e suas trágicas consequências sociais. Não sabemos exatamente dimensionar o tamanho desse impacto. Para termos a sua dimensão, vamos lembrar a paralisação e os bloqueios de rodovias pelos caminhoneiros em 24 estados e no Distrito Federal em 2018, entre os dias 21 a 30 de maio, que causou a indisponibilidade de alimentos e remédios em todo o país, a escassez e alta de preços da gasolina, com longas filas para abastecer, bem como a suspensão de aulas, redução de frota de ônibus, cancelamento de diversos voos, enormes perdas de alimentos com morte de milhões de aves e suínos por falta de ração. Antes da greve, o Ministério da Fazenda estimava crescimento de 2,5%, valor revisto para 1,6%. O Banco Central também reduziu de 2,6% para 1,6% a previsão após a paralisação.” Em outubro daquele ano, a Secretária Executiva do Ministério da Fazenda, Ana Paula Vescovi, estimava que a greve dos caminhoneiros teria tirado 1,2 ponto percentual de crescimento do Produto Interno Bruto. O PIB fechou 2018 com 1,1% de crescimento.  

Os acontecimentos atuais são muito mais graves e extensos no tempo. A Greve do Caminhoneiros durou 10 dias e resultou na perda de cerca de 1,1% do PIB, condição muito mais favorável do que a enfrentada com a Coronacrise. Na atual conjuntura, “as previsões saíram de um crescimento de 2,5% para uma recessão técnica, que são dois trimestres seguidos de resultados negativos, com retração do PIB. A Fundação Getúlio Vargas – FGV aponta que o PIB pode ter a maior retração desde o início da série histórica, em 1962, com recuo de 4,4% em 2020”, podendo a depressão chegar a 6%, se providências não forem tomadas.

A Greve dos Caminhoneiros durou 10 dias e resultou na perda de cerca de 1,1% do PIB, condição muito mais favorável do que a enfrentada com a Coronacrise.

Evidentemente, as empresas em geral, principalmente, as microempresas, e todo o conjunto de trabalhadores vão enfrentar enormes dificuldades para receberem sua renda, perante a desativação da economia. Isto impactará a arrecadação tributária, que, consequentemente, esvaziará a já vazia capacidade sobretudo de Estados e Municípios, mas principalmente da União, de financiar alternativas. “Somente governos centrais têm balanços grandes e fortes o suficiente para impedir o colapso do setor privado“. Nesta perspectiva, há de se depositar responsabilidade apenas na União, porque, neste contexto de déficit monumental, somente ela tem o poder de emissão de moeda. Ao rodar dinheiro novo por meio da Casa da Moeda, consegue oferecer algum alento aos demais entes para que intervenham diretamente, ainda que descortine uma expectativa sombria de uma inflação descontrolada.

Ações de curto prazo

Ao contrário da Crise de 2008, como já se assinalou anteriormente, a solução não passa por conferir liquidez a instituições financeiras e empresariais. A contragosto da agenda neoliberal fracassada de políticas de austeridade fiscal, no curtíssimo prazo, é necessário conseguir promover transferências diretas para os cidadãos por um período continuado. Nesta perspectiva, há um marco legal a ser articulado em todos os Estados Nacionais para fazer com que os auxílios cheguem às pessoas, para além da concessão de benefícios fiscais e facilidades de financiamento, que sempre foram a pauta de medidas anticíclicas.

A Estadosfera Brasileira dispõe de capacidades legais importantes, com dinamismo razoavelmente abrangedor do espectro social do país, para apoiar o enfrentamento da crise. Apesar do pandemônio criado pelo Presidente da República perante a gravidade da pandemia, elas já estão, em grande parte, sendo ativadas, embora a extensão das proposições mereçam avaliação. O pré-requisito político indispensável, nesta conjuntura, é que o Governo Federal assuma seu papel de liderança para propor e coordenar as ações de combate à pandemia e promoção da proteção social e, principalmente, propor os eventuais ajustes necessários no marco legal para torná-las realidade.

A Estadosfera Brasileira dispõe de capacidades legais importantes, com dinamismo razoavelmente abrangedor do espectro social do país, para apoiar o enfrentamento da crise.

Nesta perspectiva, o Brasil dispõe do Cadastro Único – Cad-Único, que congrega de 23 milhões de famílias, totalizando quase 80 milhões de brasileiros em situação de pobreza e extrema pobreza (famílias que ganham até meio salário mínimo por pessoa ou até 3 salários mínimos de renda mensal ​total). Por meio dele, promove-se a gestão do Bolsa Família. Para 2020, o programa conta com orçamento de R$ 29,5 bilhões. Ganhou reforço de R$ 3,1 bilhões e anunciou antecipação de 25% do que teriam direito a receber os trabalhadores mensalmente caso requeiram o benefício do seguro-desemprego no caso de pessoas que recebem até 2 salários mínimos e tiverem redução de salário e jornada, totalizando mais R$ 10 bilhões. 

Para proteção dos trabalhadores de carteira assinada e pequenos empresários, temos o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, para o qual há projeto de lei 714/20 em tramitação na Câmara dos Deputados prevendo saque emergencial, e o Seguro-desemprego, financiado pelo Fundo de Amparo ao Trabalhador- FAT, para o qual foi anunciado crédito adicional de R$ 5 bilhões no Proger/FAT para micro e pequenas empresas, assim como a antecipação do pagamento do Abono Salarial para junho no valor de R$ 12,8 bilhões. Além disso, foi editada Medida Provisória que destina R$ 36 bilhões para pagamento dos salários de funcionários de bares e restaurantes.

Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF atinge a parcela de agricultores, agricultores familiares, pescadores artesanais, aquicultores, maricultores, silvicultores, extrativistas, quilombolas, indígenas, assentados da reforma agrária e beneficiários do Terra Brasil – Programa Nacional de Crédito Fundiário. Tem orçamento de R$ 14,8 bilhões em 2020. No momento, prorrogou por seis meses o prazo de validade das Declarações de Aptidão ao PRONAF – DAPs, que venceriam entre os dias 25 de março e 31 de dezembro de 2020. Com isso, garante aos beneficiários a continuidade de acesso às políticas públicas da agricultura familiar durante a pandemia do coronavírus.

O país, por sua vez, não conta com um programa institucionalizado de proteção social para trabalhadores autônomos e informais. Contudo, o Governo Federal anunciou programa temporário de concessão direta de voucher de R$ 200 por 3 (três) meses a trabalhadores, que não têm carteira assinada e não recebem outro benefício do governo, como seguro-desemprego, e se enquadrem na categoria de informais, autônomos e desempregados. A Câmara dos Deputados, por sua vez, aprovou auxílio de R$ 600,00 mais R$ 1.200,00 para mulheres chefe de família. A iniciativa, que antes representava um custo total de R$ 15 bilhões, deve consumir R$ 45 bilhões dos cofres públicos. Não se sabe ainda, porém, como fazer chegar os recursos a esses necessitados, já que não há qualquer tipo de cadastro ou política vigente para esse público.

Ampliação do déficit público

Ora, com estímulos fiscais maciços, inclusive através de “entregas de helicóptero” (helicopter drops) de desembolsos diretos em dinheiro para famílias, “os déficits fiscais nas economias avançadas deverão aumentar de 2 a 3% do PIB para cerca de 10% ou mais”. Além das entregas diretas de proteção social, evidentemente não previstas nos orçamentos, todo o planeta irá enfrentar a redução da arrecadação tributária, o que, em conjunto com as despesas extraordinárias, gerará a tempestade perfeita para aumento do déficit público. Nos EUA, o pacote de medidas deverá duplicar o déficit norte-americano, elevando-o para US$ 2 trilhões. As perdas de receitas imediatamente projetadas totalizam US$ 70 bilhões.

Governo de Minas Gerais, por exemplo, projeta uma perda de R$ 7,5 bilhões na arrecadação de ICMS, o que, certamente, comprometerá o pagamento em dia de salários nos próximos meses.

No Brasil, a meta do déficit primário para 2020 está estimada em R$ 124,0 bilhões e poderá superar os R$ 250 bilhões. Nos estados, a situação financeira deverá deteriorar-se imediatamente, em razão da sua principal receita depender do Imposto sobre Circulação de Mercadorias – ICMS. O Governo de Minas Gerais, por exemplo, projeta uma perda de R$ 7,5 bilhões na arrecadação de ICMS, cuja receita esperada era de R$ 53,1 bilhões. Ou seja, espera perder cerca de 2 meses de arrecadação. Se considerarmos o grave déficit orçamentário do Estado de R$ 13,292 bilhões previsto na Lei Orçamentária, ele chegará, sem computar despesas adicionais com o combate à pandemia, com essa perda, a cerca de R$ 21,0 bilhões, algo equivalente a quase a metade da folha anual de pagamento de servidores do Estado. O que, certamente, comprometerá o pagamento em dia de salários nos próximos meses.

Uma nova Grande Depressão

De fato, no curto prazo, a pergunta ainda sem resposta com grau razoável de precisão é sobre quanto tempo persistirão os efeitos da crise precipitada pela pandemia. “A contração que está em andamento agora parece não ter a forma de “V” nem de “U” nem de “L” (uma desaceleração acentuada seguida de estagnação). Ao contrário, parece um “I”: uma linha vertical que representa os mercados financeiros e a economia real em queda”. Enquanto a pandemia do coronavírus persistir, “as economias e os mercados ao redor do mundo continuarão em queda livre”. E, “infelizmente no melhor cenário”, destaca o economista, Nouriel Roubini, “a resposta da saúde pública nas economias avançadas ficou muito aquém do necessário para conter a pandemia, e o pacote de políticas fiscais atualmente em debate não é grande nem rápido o suficiente para criar as condições para uma  recuperação tempestiva”. E está sujeito ao risco de que “outra temporada de vírus comece com novas mutações”. Neste compasso, “o risco de uma nova Grande Depressão, pior do que a original – uma Depressão Maior – aumenta a cada dia”.

Enquanto a pandemia do coronavírus persistir, “o risco de uma nova Grande Depressão, pior do que a original – uma Depressão Maior – aumenta a cada dia”.

Ora, o desdobramento dessa pandemia em uma profunda recessão mundial não pode ter sua causação simplesmente atribuída à proliferação do coronavírus. Sendo o grau de deterioração esperado de tal magnitude é, óbvio, que não podemos atribuir esse estado de coisas apenas à propagação do vírus e às ações para sua contenção. Na base dessa realidade, temos uma ordem econômica e social, cujo modo de funcionamento mostra-se incapaz de se reorganizar e de oferecer salvaguardas capazes de preservar e recompor a normalidade produtiva, de forma tempestiva e consistente. Tal como procuramos notar acima, o coronavírus não causou, mas expôs a fadiga do regime de acumulação de riquezas ancorado no capital financeiro, incapaz de consolidar de modo sistematizado a incorporação das novas tecnologias da informação ao processo de trabalho, e conduzido a partir da validação de um padrão de convivência social que insiste na defesa de um modelo de Estado resistente ao enfrentamento das desigualdades estruturais e da exclusão social recalcitrante. 

Longo tempo para superação

A superação da crise irá demorar alguns anos. Isto porque  “será preciso reconstruir instrumentos públicos de coordenação do investimento, uma vez que o setor privado  tende a sair muito frágil do ponto de vista financeiro, mais endividado e com menores receitas”. Além da falência de diversas empresas, as que sobreviverem ao período de paralisação irão retomar suas atividades em elevado grau de endividamento, diante do comprometimento com as linhas de crédito para atravessar o pior da crise. Do ponto de vista do setor público, “será preciso pensar em reconstituir os mecanismos de financiamento do Estado, promovendo reformas tributárias centradas em altas rendas e grandes patrimônios”. O endividamento público e os déficits fiscais atingirão patamares muito elevados para os padrões vigentes da responsabilidade fiscal. São parte das mudanças para se “repensar o modelo de capitalismo  que  prevaleceu mesmo após a crise de 2008, ainda que abalado  em suas estruturas e crescentemente incapaz de promover o crescimento econômico e a inclusão  social”. (Mello et alli, 2020:4)

O endividamento público e os déficits fiscais atingirão patamares muito elevados para os padrões vigentes da responsabilidade fiscal.

Por outro lado, a demissão em massa de trabalhadores e a redução do salário, que está legalmente ocorrendo, irá provocar um choque de demanda, o qual aumentará a desorganização das atividades econômicas com desemprego e perda de confiança de empreendedores e famílias. Demandará tempo para que famílias recuperem sua capacidade de consumo. Demandará tempo para as empresas restabelecerem sua capacidade produtiva. O prognóstico da superação das consequências sociais desse cenário são sombrias. Ao Estado, mesmo pressionado por recompor sua  capacidade de financiamento consumida na trajetória inicial da crise, caberá um papel indelegável de coordenação para a retomada das atividades econômicas. Sem considerar as consequências da tensão política que o enfrentamento desta realidade envolverá, essa atuação, por sua vez, demandará um bom tempo para ser pactuada, institucionalizada e, efetivamente, viabilizada financeiramente.

Superação da crise num contexto de transformações

A luta pela superação da crise que se inicia com a pandemia do coronavírus será também sentida por muito tempo, para além das dimensões imediatas de enfrentamento do debacle econômico. Ao longo do período em que estivermos promovendo a recomposição das condições econômicas e sociais para a normalidade da acumulação de riquezas, estará em processamento silencioso, porém ativo, o advento da Indústria 4.0 e da Singularidade. Como parte do desenvolvimento desigual e combinado, elas serão fomentadoras, ao mesmo tempo, de variáveis agravantes da condição de empresas obsoletas, de trabalhadores com acesso à formação precária e de estados burocratizados, mas descortinadores de novas oportunidades. Basicamente, elas nos trarão, durante todo o século XXI, em uma intensidade surpreendente, a ampliação sistemática da expectativa de vida, a disseminação contínua da automatização digital de processos e a difusão estruturada de conhecimento por meio das plataformas digitais. Essas variáveis irão interferir diretamente na reorganização da ordem econômica e social. Elas serão condicionadoras fundamentalmente da reorganização do Estado, da empregabilidade e da educação.

Ao longo do período em que estivermos promovendo a recomposição das condições econômicas e sociais para a normalidade da acumulação de riquezas, estará em processamento silencioso, porém ativo, o advento da Indústria 4.0 e da Singularidade.

Para vislumbrarmos as possibilidades do percurso dessa história que nos aguarda, vale pensar as resultantes que deverão emergir no pós-crise. No presente, a Coronacrise conduziu ao teletrabalho (home office), validando uma nova dimensão do processo de trabalho. Na sequência, impactará as relações de trabalho com novas dinâmicas de produtividade. Ela está interferindo diretamente na formação de hábitos a partir da difusão cotidiana do discurso da ciência. Assim, deverá revalidar o paradigma cultural-científico para organização da vida, em meio ao atual vazio existencial. Ela também pôs em marcha a reorganização do processo educativo, ao introduzir a educação à distância para enfrentamento das circunstâncias de isolamento. Inicia, desse modo, o reconhecimento do protagonismo do jovem, do estudante, para construção de um novo tão demandado modelo de ensino. Agora, a Coronacrise nos mostra que a vida pode funcionar sem diversas atividades presenciais. No futuro próximo, essa experiência inspirará o reconhecimento da substituição de diversas atividades por teleprocessos, por processos digitais.

Por um longo tempo, vamos ser testemunhas da mudança do paradigma do atual regime de acumulação capitalista: mudanças no processo de trabalho, da hegemonia monetária para o renminbi, a moeda chinesa, da disseminação do novo padrão energético, o fotovoltaico. Vamos ser testemunhas e precisamos ser protagonistas para enfrentar estas mudanças que a ordem capitalista continuará ainda insistir em promovê-las sob a lógica da desigualdade e da exclusão social.

Por um longo tempo, vamos ser testemunhas da mudança do paradigma do atual regime de acumulação capitalista.

Vamos ser também testemunhas de profundas transformações no mundo da vida. A Coronacrise trouxe a reflexão direta, em escala planetária, sobre o tema do sociabilidade interpessoal. Temas que se acumularam ao longo de mais de meio século, dissolução da família uninuclear, a disseminação de novos padrões de relacionamento afetivo, o papel dos idosos na sociedade, as redefinições de papéis sociais dos gêneros, a valorização do egocentrismo como padrão de sucesso, de repente, assumiram, subrepticiamente, protagonismo diante da contingência de um confinamento familiar profilático e a vivência, para muitos, de uma solitude intensa. Assim, na mesma velocidade em que desorganiza, a Coronacrise nos oferece a principal lição para enfrentar o futuro próximo: a vida se faz com relações humanas. A vida se faz com pessoas. E isso, certamente, nos dá força para encararmos os desafios que os próximos anos nos reservam.

Para citar este artigo: Silberschneider, Wieland. Mais do que o coronavírus, a Coronacrise: aonde vamos chegar?

Bibliografia

  • Dowbor, Ladislau. A Era do Capital Improdutivo: A nova arquitetura do poder, sob dominação financeira, sequestro de democracia e destruição do planeta. São Paulo, Autonomia Literária. 2017.
  • Kurzweil, Raymond. The Singularity is near: when humans transcend biólogo. New York, Penguin Books. 2005.
  • Mello et Alli. A Coronacrise: natureza, impactos e medidas de enfrentamento no Brasil e no mundo. Campinas, Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica – IE/UNICAMP. Nota do Cecon, n.9, março de 2020.

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Wieland Silberschneider é Doutor em Economia e Mestre em Sociologia pela Universidade de Minas Gerais.