Estadosfera: o fundamento relacional do Estado Capitalista

A Estadosfera designa o conjunto de relações sociais por meio das quais se processa a apropriação de renda privada para a sua alocação em benefício coletivo, social ou público. A Estadosfera se estruturou sistematicamente desde a evolução do estado moderno. Até o advento do capitalismo, a acumulação de riquezas se processava de modo disperso e extensivo. Os objetivos sociais se referiam basicamente à proteção e conquista do território. Ações sociais de saúde, de promoção do emprego e assistência social, dentre outras, hoje naturalizadas como estatais, eram oferecidas de forma limitada, focalizadamente por instituições religiosas e filantrópicas, assim como as de educação, quando eventualmente isso acontecia. Contudo, as necessidades de reprodução ampliada da riqueza foram impondo historicamente a difusão dessas e de outras iniciativas produtivas continuadas a partir do Estado, como, por exemplo, a urbanização de modo geral (aliás, condição sine quae non para a disseminação do modo de produzir capitalista), vindo a se tornar capacidades estatais estáveis.

Necessidade de Recursos

Ora, o Estado constitui uma relação originária da interação entre indivíduos em um determinado território para definir e implementar ações que resultem em benefícios comuns/compartilhados. Independente da natureza dos benefícios pretendidos, sejam eles regulatórios, sejam eles materiais, a implementação de qualquer ação a partir dele demanda recursos, precisam ser financiados. Nesta perspectiva, para sua viabilização, os indivíduos entregam parte do resultado de sua atividade produtiva, ao mesmo tempo em que pactuam modos e sentidos quanto ao destino desta contribuição e dos resultados esperados das ações pactuadas. Esse, aliás, o enredo subjacente das lutas sociais ao longo da história das nações nos últimos três séculos, cujos governos, via-de-regra, fizeram cobranças extorsivas e autoritárias de contribuições de seus súditos para financiar guerras, conquistas.

Historicamente, o exercício desse relacionamento produziu uma série de processos estáveis, que se transformaram no que intitulamos ‘instituições estatais’, ‘governo’, o ‘estado’, ‘administração pública’, ‘setor público’ etc, as quais se tornaram dirigidas continuadamente por indivíduos e ritos processuais, cuja identidade e funcionamento se orientam por princípios e legalidades diversas. Tal trajetória consolidou, então, um ambiente característico de convivência para definição e produção das ações designadas socialmente como de natureza pública, instaurando uma racionalidade específica de relacionamentos distinta do ambiente em que se definem e são produzidas as ações de âmbito privado com sentido produtivo, genericamente caracterizado enquanto “mercado” ou esfera da iniciativa privada.

A Materialidade do Estado Capitalista

Particularmente, desde a sua instalação a partir do final do século XVIII, o Estado Capitalista acumulou uma densa materialidade institucional. A sua efetivação e a reprodução demandou a apropriação continuada de parte da renda disponível para a viabilização de estruturas, processos e a produção das capacidades estatais que vieram a lhe dar concretude. Os sucessivos embates de classe que se processaram para as validações históricas dos diversos blocos hegemônicos, que dirigiram a institucionalidade estatal, envolveram a obtenção e aplicação dos recursos apropriados (e, via de regra, a sua ampliação, redirecionamento e redistribuição) como condição prática para a tradução real dos sentidos validados pelas disputas e, desse modo, historicamente para a reprodução das relações de produção no âmbito dos diversos domínios que envolve.

Tais condições materiais providas no Estado Capitalista ocorrem por meio da apropriação compulsória de parte da renda ou da riqueza de trabalhadores e capitalistas e de sua subsequente aplicação por meio de ações governamentais. Esta movimentação significa que parte do excedente gerado no processo de valorização do capital é apreendida por meio da tributação e retorna para o circuito capital-dinheiro para sua reprodução ampliada, redirecionada e redistribuída a partir do Estado na forma de ‘transferências estatais de renda’ ou de ‘distribuição de bens de consumo coletivo’, que implicará a maior ou menor recomposição do excedente originalmente apropriado pelas diversas frações de classe conforme seus respectivos departamentos econômicos.

A Peculiaridade do Orçamento Público

No Estado Capitalista, distintamente de seus antecessores, estas movimentações são processadas por meio do arranjo institucional que se estrutura em torno do orçamento público. Seguindo o princípio da legalidade fundante do Estado Democrático de Direito, a lei do orçamento deve obrigatoriamente conter todas as previsões de receitas, ações e despesas a serem realizadas a partir do Estado. A partir de circuitos negociais diversos, que incluem os Poderes Legislativo e Executivo, o orçamento público é a institucionalidade por excelência, onde ‘sociedade política’ e ‘sociedade civil’ disputam e legitimam o financiamento e a implementação de ações governamentais com repercussão material.

Tal compreensão do Estado Capitalista, que reconhece que sua materialidade se fundamenta na movimentação do excedente gerado, põe em evidência que a natureza relacional do Estado é derivada da reprodução propriamente dita da acumulação de capital. Mais do que de uma condensação resultante do embate de interesses, a materialidade do Estado é o resultado de embates diretamente articulados com a (re)apropriação (de parte) do excedente gerado. Nesta perspectiva, o arranjo orçamentário, ao mesmo tempo em que se apresenta como circuito de processamento de interesses regulado pelos princípios de democracia representativa e circuito gerenciador das capacidades estatais, constitui-se na materialização concreta da convergência entre as dimensões ‘política’ e ‘econômica’ das ações a partir do estado e, portanto, do embate pela apropriação do excedente gerado.

Racionalidade concorrencial não mercantil

Esse processo de movimentação e redistribuição da renda privada a partir do Estado funciona de modo bem característico. Ao contrário da organização da produção e distribuição capitalistas, a produção e distribuição das ações governamentais não se orientam pela lógica mercantil, o que significa não se orientar por critérios de exploração da propriedade privada e geração de lucros. Essas ações se organizam segundo uma racionalidade concorrencial própria, estruturada a partir de critérios de regulação que têm como fundamento os princípio da publicidade e legalidade, por se tratar de uma iniciativa pública em nome do privado. Essa dinâmica configura uma esfera característica para apropriação da renda privada e a sua realocação pública, que constitui a Estadosfera.

Campos de Interesse

A Estadosfera se estrutura a partir da confluência de campos de interesse característicos. A Sociedade Civil se apresenta, com seus estratos e grupos sociais, enquanto a fonte formuladora de demandas, financiadora das ações estatais e concedente do direito à representação dos interesses públicos a grupos ou estamentos determinados para governar e administrar. O Governo detém a prerrogativa de representar temporariamente a natureza pública dos interesses sociais e coordenar a implementação de ações governamentais a partir do Estado. Já a Administração Pública exerce permanentemente o papel de organizar as instituições estatais e executar a apropriação da renda privada e a sua realocação pública.

Esses campos de interesse não são homogêneos e agregam interesses específicos, corporativos, estamentais, políticos, dentre tipologias diversas, que se organizam e se impõem historicamente ou mesmo pelas contingências institucionais. A complexidade dessa diversidade política e social se manifesta ao longo dos circuitos negociais vários, que se instalam como condição estável para a movimentação e redistribuição e redirecionamento dos recursos privados em benefício público a partir do Estado, tais como tributação, licitação, elaboração do orçamento, aprovação do orçamento, controle interno e externo, dentre outros.

Para citar esse artigo: Silberschneider, Wieland. Estadosfera: o fundamento relacional do Estado Capitalista. Estadosfera, 2019. Disponível em: http://www.estadosfera.com.br/estadosfera-nao-e-a-mesma-coisa-que-estado/ Acesso em: xx de xxx. 20xx.

Bibliografia

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  • OFFE, Claus. Critérios de Racionalidade e Problemas Funcionais da Ação Político- administrativa. In OFFE, Claus. Problemas Estruturais do Estado Capitalista. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984, pp. 216-233.
  • TORRES, Ricardo Lobo. O Orçamento na Constituição. Rio de Janeiro, Livraria e Editora Renovar, 1995.
  • TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. Rio de Janeiro/São Paulo, Livraria e Editora Renovar, 2003.
Sobre Wieland 53 Artigos
Wieland Silberschneider é Doutor em Economia e Mestre em Sociologia pela Universidade de Minas Gerais.

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