
No último dia 19 de julho, foi publicado o Decreto nº 378/2019, assinado pelo Governador de Minas Gerais, Romeu Zema. Tal ato jurídico revogou o Decreto nº 365/2015, que declarara o imóvel rural “Fazenda Ariadnópolis” de interesse social e autorizava sua desapropriação para a consolidação de colônia agrícola. Como consequência direta, a permanência de 450 famílias que ali residem há cerca de duas décadas, além de suas lavouras, criações, infraestrutura de água e luz, escola, investimentos na agroindustrialização, viveiros de mudas, além das moradias construídas anos a fio, estão em risco. A área fica no município de Campo do Meio, Minas Gerais.
Não se sabe a motivação do ato revogatório, mas especula-se ser mero subterfúgio dos proprietários, em conluio com o atual titular do Executivo, para contornar as frequentes derrotas judiciais que sofreram as demandas contrárias à pretensão estatal. Logo depois de publicada, a desapropriação foi alvo de inúmeras ações, como mandados de segurança, ação anulatória, contestação, etc, infrutíferas na recondução da tutela jurisdicional a favor dos expropriados. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais – TJMG tem sido coerente com sua tradição de garantismo constitucional e de respeito à independência e autonomia dos poderes, não acolhendo as alegações de desvio de finalidade, o que, de fundo, traduzia o desacordo da parte autora com o mérito da desapropriação. Esse, como é sabido, encontra proteção contra a inconformidade, seja do administrado, sujeito ao ato de império do poder executivo, seja do estado-juiz, a cuja apreciação esteja sujeita a lide, consoante art. 9º da Lei Geral das Desapropriações, o DL 3365/41.

O ataque às razões de mérito, então inalcançável pelas vias judiciais, encontrou guarida nos bastidores da política. Por mérito, entendem-se os juízos de conveniência e oportunidade, sujeitos ao critério do gestor público a quem a capacidade ou competência de gestão administrativa pública esteja atribuída, in casu, o Governador de Estado. Esse estado de coisas, consolidado historicamente em nosso ordenamento jurídico e reafirmado pela Constituição de 1988, merece ajustes, pois concentra demasiado poder em mãos de poucos, eleitos (ou comissionados por quem escolhido foi pelo voto popular), na determinação, dentre outros feitos, de algumas despesas públicas. O sistema de ampliação da democracia participativa, fortalecido pelos governos do PT através dos orçamentos participativos, dos conselhos e conferências, bem como os plebiscitos e referendos, se prestava a alargar a capacidade consultiva da sociedade civil nas decisões administrativas, até serem golpeados de morte em quase totalidade pelo atual governo ultradireitista.
Desapropriação no Governo Pimentel: decisão corajosa
Nem todas as decisões, entretanto, em que pese a existência de tais ferramentas de balizamento da vontade popular, são fáceis de ser tomadas. A assinatura do decreto desapropriatório nº 365/2015 pelo Governador Fernando Pimentel, certamente foi uma delas. E ocorreu sob forte pressão popular, em meio à grave crise financeira que se abatera sobre Minas Gerais, herdada das gestões anteriores, e a oposição sistemática, que ameaçava a governabilidade, a ponto de vir propor impeachment por razões meramente políticas.
A denodada decisão do Governador Pimentel emergiu controversa, em momento de jurisprudência do STF ainda indefinida acerca da competência de estados e municípios na utilização da desapropriação por interesse social.
A denodada decisão emergia controversa, em momento de jurisprudência do STF ainda indefinida acerca da competência de estados e municípios na utilização da desapropriação por interesse social. Contrariava interesses poderosos, evocando a ira política da bancada ruralista, em especial do setor cafeeiro sul-mineiro. Não poucas vezes, resistiram os titulares de pastas afetas ao expediente expropriatório, como Secretaria de Governo – SEGOV, Advocacia Geral do Estado – AGE, Secretaria de Planejamento e Gestão – SEPLAG e Secretaria de Desenvolvimento Agrário – SEDA a pressões e abordagens pouco republicanas de representantes do setor, visando acordos para restauração dos cerca de 3.200 hectares ao monocultivo agrícola, a preço da remoção das famílias ali acampadas. Ao revogar o decreto, anulando os efeitos jurídicos do ato primevo, sucumbe o governo atual (ou coopera), aos agentes do lobby agrário e da especulação imobiliária regional.
Desapropriação já tinha produzido efeitos sociais concretos

Esse artigo não se propõe a analisar a juridicidade ou desdobramentos do ato revogador, mas vale registrar que a desapropriação já havia produzido efeitos concretos, desencadeado políticas de provimento de água, energização rural, educação do campo, dentre outras, afetando a área indelevelmente ao interesse público. Tais fundamentos serão provavelmente analisados pelo Poder Judiciário, que, forçosamente, decidirá sobre a juridicidade da desafetação e tutelará suas consequências.
Ao empreender a revogação da desapropriação, assume o Governo Zema uma pauta fortemente advogada por setor poderoso das oligarquias locais.
Desnecessário, tampouco, especular a motivação do ato revogatório. Como se afirmou, ao empreendê-lo, assume o Governo Zema uma pauta fortemente advogada por setor poderoso das oligarquias locais. Cumpre responder, lado outro, uma pergunta possivelmente recorrente ao cidadão comum: qual a justificativa, isso sim, para enfrentá-las? Que motivação encontrara o governo petista ao decretar a desapropriação em 2015? Especialmente em tempo de crise econômica e crise política, por tratar-se de aquisição imobiliária vultuosa, da ordem de dezenas de milhões de reais.
Sobre o aspecto social, interessa analisar a situação concreta submetida ao escrutínio governamental, quando defrontado pelas condições fáticas e sua profunda dimensão humanitária. O conflito analisado, já se arrastava por mais de década. Situação crônica decorrente da insuficiência/ineficiência dos programas de moradia e reforma agrária na região. Conhecida por sua pujança econômica, a reboque da proximidade com o estado de São Paulo, o Sul de Minas careceu de atenção dos órgãos fundiários como INCRA e ITER, resultando na consolidação de um dos maiores acampamentos de sem-terras da região sudeste, com mais de 450 famílias acampadas em 10 comunidades, todas confinadas ao longo dos 3.600 hectares do complexo da Fazenda Ariadnópolis (a área sujeita ao decreto consistia em parte do complexo de imóveis).
Ao contrário do que poderia se esperar, a região sul de Minas Gerais também produzira pobres do campo, ex-colonos, assalariados e retirantes pressionados pelo advento de uma agricultura monocultivista, mecanizada e dependente química. A migração, que, nas últimas décadas, se arrefeceu sobre as grandes capitais, recrudesceu e alterou sua polaridade para os centros regionais, em geral cidades pequenas e médias, que reproduzem os fenômenos de inchamento populacional e deficiência dos serviços e infraestrutura. Por resultado direto da pobreza e violência, parcela desses ex-retirantes converge interesses com as organizações de luta pela terra, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, que operam o chamado “trabalho de base” nas comunidades rurais empobrecidas e nas periferias urbanas.
Luta épica pela função social da propriedade
No caso concreto, centenas de famílias oriundas do fenômeno acima, haviam se instalado, em meados da década de 90, no complexo agrícola de uma antiga usina sucroalcooleira, juntamente com parte dos ex-colonos e empregados. Chamado Companhia Agropecuária Irmãos Azevedo – Cápia Ltda, o empreendimento havia falido, ocasionando dívida da ordem de 300 milhões de reais, e seu parque industrial e atividades agrícolas haviam sido desativados. Parte da dívida, inclusive, havia sido contraída com os cofres públicos estaduais, passíveis de compensação para fins de rebatimento da devida indenização decorrente da desapropriação, ora revogada. Até porque, como sói acontecer nas operações financeiras, fora arrolado parte do imóvel por garantia real. As dependências da antiga Fazenda Ariadnópolis eram, de resto, muito valiosas, pois também contavam com gigantesco parque industrial, avaliado em 74 milhões de reais.
Luta épica se desenrolaria nas décadas seguintes pela posse e direito subjetivo da função social da propriedade. Dezenas de ordens de despejo foram cumpridas, ocasionando a retirada momentânea das numerosas famílias, que sempre retornaram, irredutíveis. Episódios de violência crua, algumas patrocinadas pelo Poder Público, outras em atos de vendeta privada, fizeram parte dos capítulos do drama que ali se passava. Inúmeras audiências públicas promovidas por INCRA, Ouvidoria Agrária Nacional, Justiças estadual e federal, Polícia Militar, Assembleia Legislativa, Ministério Público, dentre outros, já haviam sido realizadas, sem lograr conciliar ou demover um dos lados de sua obsessão.
Quando da desapropriação por interesse social pelo Governador Fernando Pimentel, o conflito da Ariadnópolis era amplamente conhecido no meio político, representando chaga aberta no ambiente agrário mineiro.
Por ocasião da submissão da proposta de desapropriação por interesse social ao então Governador Fernando Pimentel, o conflito da Ariadnópolis era amplamente conhecido no meio político, vindo a representar chaga aberta no ambiente agrário mineiro. Ali residiam cerca de 450 famílias, contando numerosos idosos e crianças. O último despejo houvera ocorrido há mais de seis anos, motivo pelo qual as moradias dos sitiantes, em sua quase totalidade já estavam edificadas em alvenaria e as roças se constituíssem de diversas culturas perenes, especialmente café e fruticultura.

Fundamentos legais da desapropriação
Esse o quadro social encontrado. Infrutíferas haviam sido as tentativas dos órgãos de terra em dar cabo ao litígio. Os proprietários negavam-se a negociar suas terras com o Incra, mormente pelo expediente indenizatório se realizar por títulos da dívida agrária. Os sem-terra se mostravam intransigentes em seus propósitos e sua luta havia dado testemunho inequívoco de resiliência e obstinação ao longo dos anos, sendo inócua a ação de retirada dos mesmos. Casos semelhantes, inclusive em terras mineiras, haviam acabado em massacres, com alto custo político e humanitário.
Sob o aspecto jurídico, aparentemente tratar-se-ia de conflito meramente agrário, a merecer tutela estatal por parte dos órgãos fundiários. Contudo, já se haviam exaurido as possibilidades nas vias próprias. Evocava a situação cuidados especiais, criativos e heterodoxos, concentrando inteligência para uma solução de gestão administrativa customizada e cujo deslinde pacificasse o conflito. A reforma administrativa implementada em 2015 para adequar a máquina governamental ao novo governo havia criado novo órgão estadual afeto ao tema. A Secretaria de Desenvolvimento Agrário ofereceu solução por meio da Lei nº 4.132/1962, com precedentes já havidos no RS, SE, SP, dentre outros estados.
Conquanto controverso, o instituto da desapropriação por interesse social (genérico) é previsto no art. V, inciso XXIV da CF88, e dista do previsto no art. 184, da mesma Carta, este último servindo à desapropriação por interesse social para reforma agrária (específico). Difere principalmente em dois fundamentos: a finalidade, já que a aquisição não se presta a submeter o imóvel adquirido ao programa nacional de reforma agrária e sim consolidar colônia agrícola, cujas condições de parcelamento e uso do solo se alinhariam a políticas estaduais e municipais; e à inexistência de sanção no pagamento indenizatório. Explica-se. A reforma agrária clássica, realizada em todos os países desenvolvidos do mundo, visava à democratização da terra, de longe o mais abundante dos recursos naturais, cuja utilização agrícola através do trabalho, produz riqueza social, alimentos e gera renda, fixando o homem e a mulher no campo. Como estratégia de desenvolvimento nacional, muitos países se valeram do poder de império estatal para normatizar dimensões máximas de gleba por empreendimento, além de metas produtivas por unidade agrícola. Como se trata, além de patrimônio e recurso natural, de um meio de produção, importa ao estado que a terra não se quede ociosa, mormente pela sua capacidade indutora de desenvolvimento e produção de víveres para os centros urbanos.
Assim, a desapropriação-sanção é meio de desestimular a manutenção de imóvel improdutivo, pois estabelece a contraprestação financeira do patrimônio expropriado através de títulos da dívida pública, resgatáveis a médio e longo prazos. Nas demais modalidades de desapropriação, a indenização deve ser à vista e em dinheiro.
O valor estimado de R$ 66,5 milhões de desapropriação da Fazenda Ariadnópolis aparenta descabido e impraticável, dadas as condições econômicas do Estado, mas qual custo de abruptamente se desabrigar tamanho contingente social, com numerosa parcela de idosos e crianças?
Pois bem, a desapropriação realizada na Fazenda Ariadnópolis se processara sob os fundamentos da Lei 4.132/62, cuja indenização se daria em dinheiro, à vista, no valor estimado pelas avaliações ao redor de 66,5 milhões de reais e cujo rito aplicável segue o disposto no DL 3365/41 (diversamente da reforma agrária que segue o rito sumário da LC 76/86). O que conduz à nova e sensível questão, afora as questões sociais e de caráter humanitário, relativas ao desalojamento de milhares de famílias, quais outros fundamentos poder-se-ia evocar na defesa do gasto destinado a tal desiderato?
À primeira vista, o valor milionário aparenta descabido e impraticável, dadas as condições econômicas já anteriormente descritas. Mas qual custo de abruptamente se desabrigar tamanho contingente social, com numerosa parcela de idosos e crianças? De se duvidar da capacidade de alojamento das instituições públicas e privadas locais! E, por óbvio, dar-se-ia a custos elevados. Além disso, os gastos com a própria operação policial de apoio ao cumprimento de mandado judicial somam valores milionários. Recorde-se que o conflito já se alonga há décadas, e diversas operações policiais com logística operacional complexa e vultuosa, com deslocamento de expressivo contingente, inclusive com apoio aéreo, foram realizadas, todas sem lograr o encerramento do embate social, político e jurídico.
Menor investimento com interiorização do desenvolvimento
Impossível a contabilização de prejuízos à economia e ordem pública resultantes da estratégia de prorrogar-se o conflito, além de inequívoco efeito de acirramento das posições confrontantes. Por outro lado, a consolidação da colônia já existente por intermédio da desapropriação, além de satisfazer materialmente à massa falida, tem o condão de determinar a alocação definitiva dos ocupantes e colonos nas terras em que buscam desempenhar seu labor agrícola. Quando consolidados, os sitiantes passam a explorar o meio de produção com maiores condições de empreender. De se afirmar: é ação positiva de promoção de renda e trabalho.
Para a geração de postos de trabalho, seja por indução estatal, seja pela iniciativa privada, sempre há custos elevados, já precificados pelo mercado, bem como estudados por institutos de pesquisa. Na indústria, por exemplo, são necessários mais de 200 mil reais para a geração de cada posto. Nesta perspectiva, os R$ 66,5 milhões necessários à indenização do imóvel em tela, divididos por 450 famílias, resultam em 150 mil reais por unidade familiar. Provavelmente, o valor por posto de trabalho é menor ainda, pois na agricultura familiar, em cada unidade produtiva, laboram os pais, seus filhos, parceiros e contratados. São cerca de quatro postos criados a cada dez hectares, sem contar as contratações sazonais. No município de Campo do Meio, a maior fazenda de café emprega dois funcionários a cada dez hectares. É próprio da agricultura de base familiar empregar mais do que o agronegócio, como demonstrou o Censo Agropecuário de 2006. Ou seja: seria necessário menor investimento, promovendo-se a maior interiorização do desenvolvimento e a fixação populacional no ambiente rural. No caso concreto, ainda se lograria pacificar a situação de conflito que já se arrasta há décadas.
A todo tempo o Poder Público exerce seu juízo de conveniência e oportunidade (o chamado poder discricionário) para atender essa ou aquela demanda econômica. E o faz, em grande medida, imbuído do interesse público para a geração de empregos, riquezas e renda, ou para a manutenção daqueles. Assim procede quando perdoa dívidas de grandes indústrias, quando instala ou amplia infraestrutura, visando a promoção de determinado setor econômico. Assim o faz também na isenção de impostos para acolhimento de empreendimentos, na facilitação de crédito e rolagem de dívidas.
Portanto, sob os aspectos normativos, sociais, econômicos e morais, nenhum óbice haveria na manutenção do decreto DE-365/2015. Infelizmente, as manchetes dos jornais se ocuparão novamente de reportar conflitos, ao invés de soluções, no que toca à situação da Fazenda Ariadnópolis. Provavelmente, não vão retratar a invisibilidade dos atos solitários dos gestores públicos e como concorreram para o desenrolar desse estado de coisas. Na eventual ocorrência de violência, contudo, o brado cada vez mais forte das ruas e das redes cuidará de registrar indelevelmente quem conduziu tais figurantes da tragédia ao proscênio derradeiro.