Democracia não funciona e o orçamento precisa ser impositivo

Prédio da Secretaria do Orçamento Federal-SOF em Brasília

Os deputados mineiros acabam de aprovar emenda à Constituição do Estado instituindo definitivamente o orçamento impositivo, a saber, a obrigação do Poder Executivo de executar as emendas aprovadas pelos parlamentares. A Proposta de Emenda à Constituição – PEC 96/19 aprovada tornou obrigatória a execução das emendas individuais dos deputados ao Orçamento do Estado até o limite de 1% da Receita Corrente Líquida – RCL realizada no exercício anterior, destinando 50% desse percentual a ações e serviços públicos de saúde. O limite de comprometimento das receitas será gradualmente instituído, começando em 0,7% no exercício de 2019, 0,8% em 2020, 0,9% em 2021, até atingir 1% a partir de 2022.

No Brasil, o instituto é recente. Foi inserido no marco legal orçamentário brasileiro pelo Congresso Nacional no início do Governo Dilma Roussef, por meio da Emenda Constitucional 86/15, que tornou obrigatória a execução de emendas parlamentares até o limite de 1,2% da RCL, devendo metade do valor das emendas ser aplicada no setor de saúde, critério copiado pelo Legislativo mineiro. Em junho de 2019, foi aprovada a PEC 34/19, que ampliou correlatamente o orçamento impositivo para emendas de bancada. Na legislação aprovada, tanto a execução das emendas individuais quanto às de bancada está sujeita a contingenciamentos para cumprimento de meta de resultado fiscal e não integram o cálculo da receita corrente líquida para fins de limites de despesa com pessoal, quando os recursos forem direcionados a Estados, Distrito Federal e Municípios.

Em ambos os casos, a aprovação dos dispositivos ocorreu no contexto de tensionamento do Legislativo com o Executivo, em que o primeiro alegava falta de consideração por parte do segundo à sua representação. Isto levou o acontecimento ao noticiário, mas não se trata exclusivamente de uma resposta ou mesmo de um posicionamento político conjuntural intempestivo da Casa dos Representantes. A aprovação deste instituto esconde (ou revela) o estágio em que se encontra o (des)arranjo político democrático legal do Estado Democrático-Representativo de Direito, particularmente no Brasil, mas, certamente, no conjunto das democracias ocidentais.

Orçamento público e o princípio impositivo

Aprovar que o orçamento seja impositivo vai na contramão dos princípios democráticos que sempre orientaram a dinâmica democrática de definição das ações governamentais no Estado Moderno. O instituto do orçamento, por definição, carrega em si mesmo o princípio impositivo, na medida em que, enquanto lei aprovada, determina a realização de um conjunto de iniciativas que reconhece para o desenvolvimento econômico e social. Este fundamento encontra-se na origem da Estadosfera, este arranjo institucional econômico-democrático-legal por onde transitam os agentes públicos que implementam as ações governamentais.

Aprovar que orçamento seja impositivo vai na contramão dos princípios democráticos que sempre orientaram a dinâmica democrática de definição das ações governamentais no Estado Moderno, já que o instituto do orçamento, por definição, carrega em si mesmo o princípio .

Desde os processos políticos constitutivos do Estado Liberal Capitalista a partir do século XIX, o orçamento público constitui a instituição por meio da qual os representantes eleitos se valem para definir a atuação dos prepostos no Executivo. Originalmente, inclusive, a competência constitucional para a formulação inicial do orçamento era atribuída ao Legislativo. Isto perdurou, por exemplo, nos Estados Unidos, até o início do século XX, quando a reforma orçamentária promovida pelo Presidente Taft realocou-a no Executivo. Naquela época, o escritor norte-americano Henry James disse que só conseguia entender o desperdício e ineficiência do exercício desse poder pelos parlamentares, cujos gabinetes eram, cada um, mini-ministérios de planejamento à luz da institucionalidade atual, em razão da pujança econômica que viveu os Estados Unidos da América naquele período, que conseguia absorver suas consequências nefastas. O Brasil igualmente atribuiu a competência orçamentária original ao Legislativo no início da República, tendo iniciado informalmente sua descontinuação logo no início do século XX por meio da elaboração não-oficial da proposta orçamentária pelo Executivo. Transferiu-a definitivamente com a Reforma Constitucional de Arthur Bernardes em 1926.

Desde então, os parlamentares passaram a poder interferir na proposta orçamentária por meio de emendas. Por sua vez, o direito emendar passou a estar condicionado, diante da necessidade de se otimizar a continuidade e estabilidade do conjunto de ações conduzido pela Administração Pública, assim como de administrar a concorrência político-alocativa. Principalmente, após a Segunda Guerra, consolidou-se a complexificação das capacidades estatais e a concomitante crescente disseminação de corporações burocráticas (educação, saúde, segurança, assistência social, fiscais, procuradores etc), que, consequentemente,p assaram a demandar crescentemente a garantia de recursos para a manutenção de determinadas finalidades. O orçamento foi cristalizando destinações e, desse modo, reduzindo a margem de disponibilidades para emendas.

Debilidades do orçamento autorizativo

Além disso, o Legislativo, ao longo da evolução do Estado Liberal, defrontou-se com as debilidades político-vinculatórias próprias do orçamento público. Devido às incertezas econômicas e dificuldades operacionais, e a própria contingência da concorrência alocativa predatória alimentada pelas limitações da receita disponível, a natureza da lei orçamentária foi sempre autorizativa. O que ali está autoriza o Executivo a fazer, mas se não for executado não há exatamente sanções pelo descumprimento, o que é considerado aceitável de modo geral. Aliás, é difícil de se imaginar outra condição para o orçamento, uma vez que temos o dinamismo econômico e administrativo, que afeta executivamente, e, como fundamento, uma pactuação política na origem de tudo, que pressupõe capacidade dos agentes envolvidos de se reavaliar e repactuar programações iniciais diante de eventuais contingências.

O próprio Legislativo fez proliferar um intenso adensamento legal em busca da garantia do cumprimento da lei orçamentária, que lhe reduz a parcela discricionária restante do orçamento e, correspondentemente, o poder de emendar o orçamento.

Todavia, diante do contexto de dificuldades políticas para se assegurar a execução de ações e de se enfrentar os desafios da concorrência alocativa em termos negociais, o próprio Legislativo fez proliferar um intenso adensamento legal em busca da garantia do cumprimento da lei orçamentária, o que acabou por ampliar os condicionantes do ato de emendar e por tornar gradativamente obrigatória a implementação de diversas despesas. Tal definição de despesas obrigatórias, que, em última instância, representa a consolidação de direitos, resultou, paradoxalmente, na redução do espaço para os representantes eleitos, a cada período, operarem o atendimento imediato a suas próprias demandas políticas. A parcela discricionária restante do orçamento foi se reduzindo e, correspondentemente, o poder de emendar o orçamento. E, concomitantemente, ampliou-se a sensação política de perda de influência do parlamento. Contudo, em uma análise mais acurada, de um ponto de vista lógico, caberia ampliar-se a receita disponível para se avançar na promoção de alocações adicionais propostas pela representação política dos parlamentares, o que nunca foi o caminho escolhido.

Contingências do regime de coalizão

No Brasil, a trajetória de crescente cristalização de despesas obrigatórias foi agravada pela combinação de contingências políticas e burocrático-legais devidas à dinâmica de “governos de coalizão”, emoldurados por grande número de partidos e uma precária cultura de identidade partidária, e a ineficiência administrativa. De modo geral, no regime presidencialista de coalizão, Executivo e Legislativo processam a validação dos apoios políticos em contraponto à “liberação” de recursos orçamentários, particularmente, a execução de emendas parlamentares. À parte o debate sobre a sua legitimidade, vale destacar que esse procedimento, além de contribuir para desfocar o acompanhamento pelo Parlamento do plano de ação do Executivo como um todo, resulta no desencadeamento episódico simultâneo junto à Administração Pública de processos administrativos proporcionais ao número de parlamentares envolvidos, que provoca natural encilhamento executivo.

No regime presidencialista de coalizão, Executivo e Legislativo processam a validação dos apoios políticos em contraponto à “liberação” de recursos orçamentários, particularmente, a execução de emendas parlamentares.

Além do mais, do ponto de vista legal, as exigências cartoriais auto-impostas pela Administração Pública dificultam, via-de-regra, a implementação de convênios, contratos e compras de modo geral e, especialmente, emendas dos deputados, que, por seu turno, não dispõem de interessados diretos na burocracia executiva para tourear essas dificuldades. Neste ambiente, mesmo sob a unção do “presidencialismo de coalizão”, em que se acumulam liberações de emendas juntamente com emendas liberadas não efetivamente executadas, acaba por grassar facilmente a dúvida se a execução não ocorre por dificuldades ou má-fé e, correlatamente, o questionamento da legitimidade da interlocução política. Nesta perspectiva, surge, então, a suposta tábua de salvação, a instituição do orçamento impositivo, como mecanismo que garantiria a execução.

Ares surreais do orçamento impositivo

Bem, no mundo real, porém, a entrada em vigência do mecanismo do orçamento impositivo assume ares surreais. Em uma Administração Pública com déficit crítico como a situação do Estado de Minas Gerais, assim como com alto comprometimento de seu orçamento com despesas obrigatórias, que ultrapassa 100%, um dispositivo desse carece de realismo. Como a RCL estimada para 2020 segundo a Lei de Diretrizes Orçamentárias (Lei n° /19) é de R$ 63,1 bilhões, os parlamentares poderão apresentar um total de R$ 631 milhões de emendas. Ora, ainda que a Emenda 96/19 preveja a devida adequação das emendas ao cumprimento do resultado fiscal, a aplicação do orçamento impositivo significa que, até que o resultado fiscal do Estado se distancie significativamente dos referidos R$ 600 milhões, o Legislativo deterá a prerrogativa de definir algo entre 50 a 100% das despesas discricionárias em Minas Gerais. Algo distante do razoável diante de um déficit fiscal anual expressivo de cerca de R$ 11 bilhões, alimentado pelo déficit previdenciário entorno de R$ 14 bilhões, deve ser cenário que muito demorará a se ver acontecer.

O Parlamento Mineiro, para resgatar as prerrogativas de sua representação, vale-se de um mecanismo que mais lhe amplia o poder de clientela do que restabelece sua posição de interlocutor político.

Não se trata aqui de se falar em ‘engessamento’ do Poder Executivo, até porque, por concepção liberal, espera-se que esse esteja ‘engessado’ às determinações do Legislativo. Afinal, cabe à representação dos interesses da sociedade aprovar aquilo que deve ser realizado em seu benefício. Trata-se efetivamente de reconhecermos o fracasso da democracia. O Parlamento Mineiro, para se fazer reconhecido, para resgatar as prerrogativas de sua representação, vale-se de um mecanismo que mais lhe amplia o poder de clientela do que restabelece sua posição de interlocutor político dos interesses da sociedade.

Para citar esse artigo: Silberschneider, Wieland. Quando a democracia não funciona e o orçamento precisa ser impositivo. Estadosfera, 2019. Disponível em: https://www.estadosfera.com.br/orcamento-impositivo-fracasso-da-democracia/?preview_id=1161&preview_nonce=de59eea226&preview=true&_thumbnail_id=1174 Acesso em xx de xxxx de 20xx.

Sobre Wieland 53 Artigos
Wieland Silberschneider é Doutor em Economia e Mestre em Sociologia pela Universidade de Minas Gerais.