A Natureza Sociológica da Responsabilidade Fiscal

O debate sobre responsabilidade fiscal se apresenta como tema complexo e ainda controverso, mesmo após mais de 20 anos de seu surgimento no contexto do Consenso de Washington. Para a opinião pública, limita-se ao cumprimento de indicadores fiscais, enquanto para o cidadão é provavelmente algo bastante enigmático pela própria natureza hermética da palavra ‘fiscal’. Para gestores públicos e agentes políticos, presta-se a designar um conjunto de normas fiscais, mais especificamente no Brasil, à denominada Lei de Responsabilidade Fiscal, Lei Complementar nº 101, de 05.05.2000. Responsabilidade, todavia, possui um significado bem direto para todos: responder por algo. O algo neste caso, o mencionado adjetivo ‘fiscal’, é evasivo, mas destina-se a designar tudo o que se refere a dinheiros, recursos movimentados a partir do setor público. O assunto, portanto, se refere à responsabilização pela gestão dos recursos públicos. Respondem governo e governantes por aquilo que fazem com a renda apropriada dos cidadãos. Contudo, embora esta breve síntese coloque luzes sobre o que se trata, por si só, ela ainda não é suficiente para esclarecer efetivamente o significado de responsabilidade fiscal.

Ora, quando falamos em responsabilização pela gestão dos recursos públicos, estamos colocando em pauta um temário bastante intrincado. O tema envolve múltiplas dimensões como seguir indicadores, combater a corrupção, promover o desenvolvimento e a cidadania, cobrar impostos, realizar compras público-estatais, dentre muitas outras. Isto porque o processo de tomar recursos dos cidadãos e aplicá-los em benefício da coletividade, que é feito a partir do Estado, envolve diversas capacidades e circuitos negociais para fazer acontecer a coisa pública e tem consequências tanto em termos de resultados quanto em relação à própria apropriação da renda privada. Os governos constituem parte da sociedade, escolhida por esta para tratar dos assuntos da coletividade. Para tanto, recebem dela contribuições privadas na forma do pagamento de tributos para implementarem ações de natureza pública, que promovam o desenvolvimento econômico e social e garantam a convivência social e política. Esta condição inata daquilo que é o Estado, do que fazem os governos e as administrações públicas, implica a responsabilização daqueles que operam a partir daí os recursos e as aplicações em benefício do público.

Responsabilização sob a condição de representação

Neste processo, estamos sob a condição de representação, ou se se preferir, de delegação. Indivíduos são constituídos em autoridades para atuarem em nome do público, sob o ordenamento do Estado de Direito. À sociedade, ao mesmo tempo financiadora e beneficiária, interessa conhecer os motivos e resultados que irão mover as ações públicas e seus resultados, como forma de assegurar a aplicação dos recursos conforme os consensos socialmente formados. Para o reconhecimento da natureza pública dessas ações, os cidadãos, os diversos grupos sociais postulam que governos e governantes atuem na gestão desses recursos e dos gastos que daí irão ser realizados, em conformidade com um conjunto de preceitos, que permitam verificar a adequação das ações aos preceitos das leis, e intervir, quando necessário, sobre uma infinidade de dimensões das ações que não são passíveis de ‘jurisdização’ e demandam formulações discricionárias e intempestivas das autoridades constituídas.

Desde a consolidação do Estado Capitalista de Direito, a partir do século XIX, vêm se ampliando as capacidades constitucionais assim como a extensão das contribuições dadas, gerando um crescente adensamento de processos e procedimentos para o processamento da apropriação de parte da renda privada e de sua aplicação pública. Correlatamente, se estruturou uma nova esfera público-estatal especializada para a definição, produção e distribuição de bens e serviços públicos, orientada por princípios de transações não-mercantis, onde agentes públicos constituídos negociam entre si, com empresas, cidadãos, grupos de interesse por circuitos negociais diversos estruturadores da ação governamental, configurando uma estadosfera. Neste contexto, historicamente, se propagou a busca da responsabilização de governos e governantes para garantia de seu agenciamento público na movimentação de recursos públicos, particularmente perante os desafios de enfrentamento de externalidades negativas fruto do transbordamento de suas atuações como déficit público, insuficiência de desenvolvimento, desemprego, corrupção, hipertrofia de atenção a grupos de interesse, dentre inúmeras outras.

Para citar esse artigo: Silberschneider, Wieland. A Natureza Sociológica da Responsabilidade Fiscal. Estadosfera, 2019. Disponível em: http://www.estadosfera.com.br/a-natureza-sociologica-da-responsabilidade-fiscal/ Acesso em: xx de xxx. 20xx.

Bibliografia

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Sobre Wieland 53 Artigos
Wieland Silberschneider é Doutor em Economia e Mestre em Sociologia pela Universidade de Minas Gerais.

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