Política fiscal em tempos de pandemia: uma análise dos Governos Kalil e Zema

Um consenso se estabeleceu em torno da COVID-19, formando o entendimento entre economistas e formuladores de políticas públicas a respeito da necessidade de ações governamentais abrangentes e incisivas para mitigar e contra-arrestar seus efeitos sanitários, sociais e econômicos, reconhecidos como de grande extensão e relativamente prolongados. A posição assumida pelo Fundo Monetário Internacional – FMI frente aos desafios globais associados à pandemia é emblemática no sentido de indicar essa rara e difícil convergência. Para a instituição multilateral, tão ciosa na defesa de mercados desregulados, a crise pandêmica vivenciada pelo mundo atualmente é a pior desde a Grande Depressão dos anos 1930 e, portanto, vai demandar respostas excepcionais e em larga escala por parte dos Estados nacionais, implicando numa obrigatória mudança do padrão dominante de política macroeconômica, em especial da política fiscal.

No Brasil, a despeito das medidas limitadas, descoordenadas e insuficientes que têm caracterizado a atuação confusa, errática e lenta do governo federal no enfrentamento da crise pandêmica, tanto no campo da saúde pública quanto nas áreas social e econômica, o Congresso Nacional aprovou uma nova institucionalidade fiscal no país de caráter emergencial, criando condições normativas para ações mais amplas e efetivas por parte da União e dos entes subnacionais.

Em relação ao Governo Central, as possibilidades de atuação fiscal foram alargadas por intermédio da promulgação da Emenda Constitucional nº 106, em 7 de maio, estabelecendo o que ficou denominado de “Orçamento de Guerra”. Para os entes subnacionais, foi aprovada a Lei Complementar nº 173, sancionada em 27 de maio, instituindo um programa federativo de enfrentamento da crise pandêmica, que, além de contemplar auxílio financeiro federal de R$ 60 bilhões, alterou diversos dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF.

As normas fixadas pela LC 173/2020 permitem governadores e prefeitos executarem gastos deficitários em caráter extraordinário neste exercício financeiro de 2020, abrindo, assim, espaço orçamentário para uma ação abrangente e incisiva dos entes subnacionais para fazer face aos efeitos da crise. Contudo, apesar da dimensão da crise pandêmica e da nova institucionalidade estabelecida para a implementação de ações anticíclicas, estados e municípios têm adotado políticas fiscais contracionistas, negligenciando – ou não reconhecendo – o contexto estruturalmente transformado pelos novos impasses sanitários, sociais e econômicos decorrentes da eclosão da COVID-19 no Brasil e no mundo.

A gestão orçamentária praticada pela Prefeitura de Belo Horizonte – PBH e pelo Governo de Minas Gerais diante do avanço da pandemia na capital e no estado é ilustrativa dessas decisões irrealistas e inapropriadas de política fiscal por parte dos entes subnacionais, como será examinado a seguir.

A política fiscal da PBH

A análise da política fiscal implementada pela PBH no enfrentamento da crise pandêmica deve levar em consideração algumas características da dinâmica orçamentária municipal. Uma das mais importantes diz respeito à evolução da receita tributária. Em razão de regras e costumes estabelecidos, a arrecadação do Imposto sobre Propriedade territorial Urbana -IPTU tende a se concentrar nos dois primeiros meses de cada exercício financeiro. De modo geral, cerca de 40% da receita anual do IPTU ingressa nos cofres municipais no primeiro bimestre do ano. A mesma concentração é observada nas transferências da cota do Imposto sobre Propriedade Veículos Automotores – IPVA: algo em torno de 48% dos recursos anuais repassados ao município são apropriados nos meses de janeiro e fevereiro.

Assim, a dinâmica orçamentária da prefeitura é marcada pelo aumento sazonal expressivo das receitas no primeiro bimestre, seguido por forte retração igualmente sazonal no segundo bimestre. Essa oscilação se repete em todo início de ano e implica na recorrente deterioração do resultado primário no segundo bimestre de cada exercício financeiro, comparativamente ao período imediatamente anterior. Conforme pode ser verificado pelas informações sistematizadas na Tabela 1, outras duas características dessa dinâmica orçamentária, combinadas com a deterioração da receita e do Resultado Primário, consistem no acentuado incremento dos investimentos e a retração dos gastos com pessoal entre os dois bimestres iniciais do ano.

É importante ter essa dinâmica orçamentária em consideração porque a pandemia eclodiu em Belo Horizonte – assim como em Minas Gerais e no Brasil – no início do segundo bimestre, exigindo, por parte dos gestores municipais, reações imediatas para fazer face à crise sanitária e socioeconômica em curso acelerado, tanto em termos locais quanto supralocais. Mas o que os dados expostos na Tabela 1 indicam é que, a despeito do contexto transformado pela crise pandêmica, a política fiscal manteve inalterado o padrão de evolução orçamentária anterior, reproduzindo as oscilações sazonais típicas do período. Ou seja, como nos anos precedentes, houve contração das receitas nos meses de março e abril de 2020, em relação ao primeiro bimestre, acompanhada pela redução dos gastos com pessoal e a expansão dos investimentos, bem como pela deterioração do resultado primário.

O que houve de novo, expressando a reação dos gestores municipais à eclosão da COVID-19, foi a implementação de um ajuste fiscal como resposta à perda de receitas tributárias em nível mais acentuado do que o verificado nos exercícios anteriores. De fato, como evidenciam os dados da Tabela 2, a queda da arrecadação de impostos entre os dois bimestres iniciais de 2020 foi maior do que a registrada nos mesmos períodos de 2019 e 2018, já refletindo as consequências da crise pandêmica sobre a atividade econômica e a renda das famílias. Esse desempenho negativo foi determinado pela retração mais significativa das receitas de IPTU (-81,7%), mas também pela contração do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISSQN (-9,8%) e do Imposto sobre Transmissão de Bens Intervivos – ITBI (-25%). Para contrabalançar tal perda de recursos tributários, as despesas primárias foram comprimidas e, diferentemente de outros anos, caíram mais de 12% no segundo bimestre em relação ao primeiro bimestre de 2020. Os cortes nas Despesas Primárias foram baseados na redução do custeio (-9,2% das Outras Despesas Correntes), mas também se apoiou na maior redução dos gastos com pessoal e no menor incremento dos investimentos, em comparação com as variações desses dois componentes orçamentários nos exercícios passados. Ademais, houve redução importante nos gastos com serviços da dívida (20,7%). Embora não entre no cálculo do resultado primário, a contração dessas obrigações financeiras certamente atenuou as restrições orçamentárias, criando condições para que os cortes de despesas primárias fossem suavizados em algum grau.

Com tais iniciativas, os gestores municipais efetuaram um ajustamento fiscal bastante expressivo, como pode ser inferido pelo resultado primário alcançado. Em pleno avanço da crise pandêmica, a deterioração do resultado primário foi muito menos intensa do que nos exercícios passados, de modo que o déficit registrado no segundo bimestre de 2020 correspondeu a 38% e a 40% do contabilizado no mesmo período de 2019 e 2018, respectivamente.

Contudo, o ajustamento fiscal foi ainda mais aprofundado do que o sugerido por esses indicadores, em razão das medidas adotadas ao longo do segundo bimestre de protelamento da execução orçamentária das despesas empenhadas, implicando no represamento de gastos. Os dados reunidos no Gráfico 1 atestam que, embora o nível de liquidação e de pagamento das despesas empenhadas tenha aumentado em relação ao primeiro bimestre, o represamento de gastos continuou elevado.

O maior represamento ocorreu com os investimentos. Das despesas empenhadas, apenas cerca de 36% foram liquidadas e algo em torno de um terço veio a ser efetivamente pago entre março e abril. Esse baixo nível de execução orçamentária dos investimentos explicita que a ampliação das despesas empenhadas nessa rubrica no segundo bimestre de 2020, quando mais do que dobraram em relação aos valores do bimestre anterior, foi muito mais contábil do que efetiva. Vale notar que os gastos com pessoal tiveram elevado percentual de liquidação e pagamento no segundo bimestre, chegando a superar os valores empenhados. Entretanto, é necessário levar em conta o corte que esses dispêndios tiveram, de quase 28% em relação ao primeiro bimestre. Os gastos financeiros, por sua vez, mantiveram níveis de liquidação e pagamento relativamente altos e estáveis.

O aspecto importante a destacar é que, de modo geral, cerca de 20% das despesas primárias empenhadas foram represadas, deixando de ser liquidadas e pagas, o que significou uma substancial contenção de gastos superior a R$ 390 milhões nos meses de março e abril. Levando em consideração a redução de mais de 12% dessas despesas em relação ao primeiro bimestre, como visto antes, observa-se que as medidas de ajustamento fiscal e de represamento de gastos implementadas pelos gestores municipais promoveu compressão muito maior dos dispêndios de caráter primário, que alcançou quase R$ 660 milhões entre março e abril – momento em que a pandemia avançava em Belo Horizonte, agravando as condições sanitárias, sociais e econômicas da capital mineira.

A política fiscal do Governo Estadual

Na análise da política fiscal do Governo de Minas Gerais, um aspecto fundamental a considerar diz respeito aos desequilíbrios orçamentários duradouros vivenciados pelo estado e que foram agravados na segunda metade desta década, em razão, dentre outros fatores, à crise macroeconômica do país que se arrasta sem desenlace desde 2015.

Esse contexto persistente de desajuste fiscal é ilustrado pelos dados organizados na Tabela 3, que evidenciam as dificuldades enfrentadas pelo Governo Estadual para equacionar os seus problemas orçamentários. Como pode ser verificado, o esforço de ajustamento realizado nos dois primeiros quadrimestres de 2019, que resultaram em um expressivo superávit primário acumulado de mais de R$ 4,3 bilhões, foi quase que integralmente perdido no quadrimestre final, quando o resultado positivo foi revertido e se transformou em um déficit primário de R$ 3,6 bilhões. Assim, embora tenha sido obtido superávit de R$ 773,1 milhões ao fim do exercício, o a Governo Estadual encerrou 2019 em trajetória de deterioração fiscal.

Diante desse processo de piora orçamentária, o Governo Estadual começou 2020 buscando reequilibrar suas contas. As informações da Tabela 4 indicam esse ajustamento fiscal: a combinação do aumento de receita com o corte de gastos primários no primeiro bimestre do ano permitiu reverter o déficit de R$ 4,7 bilhões contabilizado no último bimestre de 2019 em um superávit de R$ 1,2 bilhão.

A eclosão da crise pandêmica no estado a partir de março fez esse frágil reequilíbrio fiscal ser interrompido, em razão de dois fatores principais. De um lado, houve acentuada queda das receitas. Considerando que a elevada redução verificada no IPVA tem forte componente sazonal, uma vez que a sua arrecadação é concentrada nos dois primeiros meses do ano, a perda de receitas totais é explicada sobretudo pela retração do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS (-12,5%), que foi a maior registrada na década neste período do ano. De outro lado, a deterioração fiscal foi consequência do aumento de 11,2% das despesas primárias, puxado, principalmente, pelo incremento dos gastos de custeio (89,4%).

A resposta do Governo Estadual ao agravamento dos desequilíbrios orçamentários foi a ampliação do ajustamento fiscal que vinha em curso desde o início do ano. Por meio do Decreto nº 47.904/2020, foi implementado um amplo programa de corte e contingenciamento de gastos de custeio e de capital, com a estimativa de reduzir em R$ 4,3 bilhões as despesas no exercício de 2020. Ademais, o governo estadual vem mantendo a sua estratégia de protelar a execução orçamentária das despesas empenhadas. Conforme pode ser verificado no Gráfico 2, o percentual de liquidação e de pagamento das despesas primárias empenhadas no orçamento vem se reduzindo desde o segundo bimestre de 2019. No segundo bimestre de 2020, do total de despesas primárias empenhadas, 70,3% foram liquidadas, enquanto que 68,2% vieram a ser pagas.

A maior austeridade fiscal adotada pelo governo em pleno avanço da pandemia no estado foi justificada pela previsão de perda de receita de R$ 7,5 bilhões este ano em consequência da crise. Mas vale observar que, somando o corte e contingenciamento de gastos realizados aos R$ 2,99 bilhões que o estado receberá de auxílio financeiro federal por meio da recém sancionada LC 173/2020, o governo vai compensar quase que integralmente a perda de receitas previstas, conseguindo, assim, neutralizar em grande medida os efeitos negativos da crise pandêmica sobre o orçamento.

Esse aspecto é de suma importância e deve ser destacado, porque elucida o cerne da estratégia que orienta e baliza o manejo da política fiscal do Governo Romeu Zema em plena epidemia, que é a de circunscrever os custos das ações de enfrentamento à COVID-19 nas condições financiamento disponíveis no orçamento estadual, visando um objetivo maior: minimizar o máximo possível agravamento dos desequilíbrios das finanças públicas de Minas Gerais. Como as condições orçamentárias de financiamento existentes são muito estreitas, as ações de enfrentamento à pandemia em Minas Gerais estarão estruturalmente restringidas.

Tal estratégia de caráter “fiscalista” dominante nas ações do governo ficou evidenciada no Programa de Enfrentamento dos Efeitos da Pandemia de COVID-19, criado pela Lei º 23.632/2020. Com esse programa, o Governo Zema pretende aplicar R$ 260,4 milhões na execução de 12 ações, entre as quais a implantação de hospitais de campanha, auxílio financeiro emergencial para estratos sociais carentes, ações assistenciais a idosos e moradores de rua, dentre outras iniciativas.

Os recursos para financiar o programa serão supridos por crédito orçamentário especial, mediante a anulação de dotações orçamentárias e uso de reservas de contingência. Ou seja: o programa será financiado estritamente por meio de realocação de recursos orçamentários já existentes, sem impacto fiscal. Como consequência, o alcance dessas ações será bastante limitado. Os projetos de caráter social são ilustrativos a esse respeito. O programa de auxílio financeiro emergencial, por exemplo, tem orçamento de R$ 64 milhões e a meta de alcançar cerca de 481 mil famílias no estado, o que significará uma parcela única de auxílio de apenas R$ 133,00 em média por família neste ano. A assistência planejada a idosos e moradores de rua, por sua vez, reservou R$ 200 mil para atender essa população em 10 municípios mineiros.

Algumas considerações finais

A análise das politicas fiscais adotadas pelos Governos Kalil e Zema permitiu verificar que, mesmo no contexto desafiador e excepcional de pandemia, os parâmetros aplicados na gestão das finanças públicas não se alteraram, sendo mantida a orientação de orçamento equilibrado anterior à crise. Sob tal diretriz, as ações de enfrentamento aos efeitos sanitários, sociais e econômicos da COVID-19 ficaram subordinadas às condições de financiamento dadas pelas bases tributárias, cuja retração neste início de ano, provocada pelo avanço da própria situação pandêmica, levou a ajustamentos fiscais prematuros que, por sua vez, restringiram as medidas de mitigação e compensação da crise.

Esse padrão de política fiscal adotado tanto em âmbito municipal quanto na escala estadual contribui, em grande medida, para o avanço da pandemia em Belo Horizonte e Minas Gerais, tendo em vista que as ações adotadas, ainda que apontem na direção correta, tornam-se estruturalmente restringidas, implicando em insuficiências e debilidades.

Com a sanção da LC 173/2020, governadores e prefeitos foram municiados com instrumentos fiscais mais amplos, que permitem a execução de gastos deficitários e, portanto, abrem espaço orçamentário para acomodar as ações que se fizerem necessárias para fazer face aos efeitos da crise pandêmica. As condições institucionais para uma outra política fiscal estão dadas, tornando injustificáveis decisões governamentais pautadas por princípios estritos de austeridade orçamentária.

Sobre Danilo Jorge Vieira 5 Artigos
Doutor em Economia Aplicada pelo Instituto de Economia da UNICAMP

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